quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Sobre o livro de David Grossman

Até ao Fim da Terra

Lídia Jorge *

Um grande livro nem sempre tem atrás de si as mãos de um grande homem. Mas quando se dá o caso de haver essa coincidência, ficamos menos sós neste mundo. Foi isso mesmo que pensei, há quatro anos, enquanto David Grossman participava de um encontro com leitores, sob uma tenda aberta, diante das Muralhas de Jerusalém.

Corria então a Primavera de 2008, e a jornalista Ilana Dayan lia para o auditório uma passagem do romance Até ao Fim da Terra, acabado de publicar. O texto escolhido correspondia àquele momento de resmunguice em que a personagem Ora, pensando nos checkpoints onde o seu filho Ofer havia prestado serviço militar, vai picando os vegetais para uma salada, ao mesmo tempo que enuncia os nomes dos árabes notáveis implicados nas guerras com o seu país, desejando-os trinchar, e a certa altura, num remate inesperado do esconjuro, o seu pensamento explode numa direção contrária – “... numa revelação súbita, junta também Golda, Begin, Shamir, Sharon, Bibi, Barak, Rabin e Shimon Peres – pois no fim das contas não terão eles também as mãos manchadas de sangue? Será que fizeram alguma coisa para que ela tivesse cinco minutos de paz aqui?” (pág. 630). É que a Ora, mais mãe do que cidadã, interessa-lhe sobretudo a vida do seu rapaz, e a forma de brandir a faca de cozinha revela o potencial da sua raiva. Provavelmente, em mais lugar nenhum do Mundo aquela página poderia ter o efeito que produzia naquele auditório, o riso, a ironia, a explosão de entusiamo por um texto metafórico sobre a luta pelas pátrias. Ou as várias lágrimas misturadas de que fala este livro.

Mas a emoção que então perpassava na tenda não provinha apenas do facto literário em si. Ainda que não se falasse no assunto, sabia-se que a história de Ofer, começada a escrever em 2002, havia sido uma antecipação do destino de Uri, o filho de Grossman, caído no final da segunda Guerra do Líbano em 2006, e que a atitude de proteção pelo poder verbal que o autor havia imaginado ao conceber o livro, era exatamente a mesma que a personagem Ora havia mantido em relação a Ofer - falar, recordar, dizer palavras, uma prolongada oração laica, de forma a manter incólume a pessoa evocada. Isto é, Grossman, como muitas vezes inexplicavelmente acontece na Arte, havia vivido por antecipação a história da personagem Ora. E logo se dava a trágica coincidência de que num e noutro caso, a palavra poética não cumprira a suposta missão, não protegera os protegidos.

Naquele recinto, esse facto extraliterário vinha corroborar a mensagem mais importante – A de que toda a guerra é imunda, nenhuma guerra é salvadora. A emoção que perpassava na atmosfera do fim da tarde poderia ser entendida assim. Um livro, uma longa meditação sobre a violência causada pela partilha da terra quando, por ironia, os homens e as mulheres, uma vez desarmados, se sentem irmãos entre si. Aliás, de certa forma, toda a obra de David Grossman, tal como a de Amos Oz, Aharon Appelfeld, ou Yehudit Katzir, são variações contemporâneas desse mesmo tema. A terra de donos sobrepostos, um território limitado que não se consegue dividir, provavelmente, uma parábola antecipadora em relação à Terra que um dia poderá não dar para todos. Até ao Fim da Terra é um livro cuja temática está enunciada no próprio título. A terra, as suas fronteiras, os seus blindados, os seus tiros.

E no entanto, mais do que um livro de guerra, trata-se de um livro sobre almas. Especialmente sobre a alma de Ora, a mulher de dois homens e de dois filhos em relação aos quais tudo aconteceu ou por acaso, ou por engano. Nela, só a maternidade surge como um espaço inviolável, uma condição inteira, vivida até ao fulgor da alegria e da tragédia, em grau absoluto. Curioso que a este propósito Paul Auster tenha escrito que Flaubert criou a sua Emma, Tolstói a sua Anna, e Grossman dá-nos a sua Ora. Devemos acrescentar, porém, que Ora, personagem que seguimos no interior do pensamento, como numa operação de laparotomia da sua alma, distingue-se de Emma e de Anna Karenina, precisamente porque o seu conflito não é um conflito de amor, é um conflito entre o amor, a maternidade e o Estado, e é isso que torna este livro tão único e especial.

Mas sendo um livro de personagens que vivem sob o efeito de guerras que fazem parte da herança histórica recente, com a invocação de lugares inscritos no mapa da imaginação ocidental, a sua leitura oferece alguns desafios nem sempre fáceis de ultrapassar.

Basta dizer que as primeiras páginas conduzem-nos às cegas, pelo interior de um pavilhão de isolamento de um hospital de Jerusalém, durante a Guerra dos Seis dias, e uma vez que as vozes são entrecortadas, e é através delas que sabemos o que se passa lá fora e na recordação, a nebulosa deixa-nos por vezes tão às escuras quanto se encontram as personagens. Assim, há que voltar atrás para se compreender que os então adolescentes Ora e Avram, internados com doenças infectocontagiosas, se encontram no escuro da noite para conversarem, tendo por testemunho um outro doente, o jovem Ilan, sedado, numa cadeira de rodas.

Por desafiador que seja, vale a pena enfrentar com determinação estas primeiras cinquenta páginas, já que o Prólogo, 1967, é uma espécie de embrião de todas as linhas de força que irão conduzir a vida das três personagens. Essa relação irá esclarecer-se à medida que o leitor avance nos capítulos que reportam a ficção ao ano de 2000. Quem é quem, que papel cada um desempenha, e porque existem tamanhas chagas nos seus percursos, será matéria para uma teia fina e longa, urdida cautelosamente, poeticamente, com a demora própria - não de um espelho que se passeia, como referia Stendhal - mas como um caleidoscópio de espelhos que tudo lembra e tudo vê, a propósito de uma deambulação em ziguezague, através das terras da Galileia.

A história só em parte pode ser resumida.

No dia em que Ofer deveria ser desmobilizado, para retomar a vida civil, Ora descobre que o filho, tendo sabido que uma operação de grande envergadura iria ter lugar nos dias seguintes, oferece-se como voluntário. A mãe, movida por um mau pressentimento não verbalizado, resolve fazer uma peregrinação para se aproximar do filho, e ao mesmo tempo para fugir das notícias que se anunciam ao longo do caminho. Nessa deambulação, de fuga ao acontecimento, e de aproximação ao cerne do coração da sua antiga criança, ela não vai sozinha. Consigo leva Avram, o antigo adolescente do hospital de Jerusalém, que haveria de ser mais tarde ferido e torturado pelos egípcios, na Guerra do Yom Quipur, em 1973. Caminhando os dois ao longo do território esparso, essa deambulação é uma espécie de longa epifania, já que permite que Ora vá revelando, a pouco e pouco, como acabou por ser mulher de dois homens, Ilan e Avram, e mãe de dois rapazes, Adam e Ofer, ambos concebidos em situações extraordinárias, sob o impacte da guerra e do acaso. Tudo começara no dia em que os dois amigos haviam pedido por telefone que Ora fizesse um sorteio para ver qual dos dois partiria de licença. Dois papéis que Ora lançaria dentro da copa de um chapéu. Sob o signo da puerilidade, assim começa a desordem. Um deles iria passar o fim de semana a casa, o outro iria ser conduzido ao centro de um braseiro.

Aliás, os temas embrionários do prólogo, o amor, o signo da desordem, da guerra e suas feridas, mantêm-se do princípio ao fim do livro, e em termos de construção, explodem como uma estrela. Os intérpretes também. Um dos subtemas é a amizade de Ilan por Avram, tendo a mulher por laço de união e não de disputa, a ponto de os três parecerem só um, relação que vai sendo desvendada a pouco e pouco, de modo irradiante. Mas mais do que essa engenhosa forma de estruturar este livro grandioso, que tudo agarra e tudo descreve, criando uma espécie de cosmogonia original, a força desta obra reside na capacidade evocadora que David Grossman atribuiu às personagens, sobretudo à amante dos dois homens.

Uma espécie de saga mental, assomada pela descrição dos factos da guerra, e pela memória densa da maternidade, um painel de almas, que o autor já havia ensaiado em O Livro da Gramática Interior, mas que só agora, em plena maturidade, consegue realizar evitando certo hermetismo, e em seu lugar glorificando o prazer, a paisagem, a alegria, a fúria de viver, em contraponto com a ameaça da morte. Só em Ora existe uma alma que se expõe em três andares – A dos factos que aconteceram, a dos factos que vão sucedendo, e a Ora dos desejos incontidos. A última afirmação do livro também lhe pertence - “Pensou : que fina é a crosta da terra”. O que significa que Ora não está preocupada com a extensão política da terra, antes com a sua profundidade. Ora poderá não ter terra suficiente para cobrir o seu filho.

Até ao Fim da Terra é um livro ambicioso? Sim.

Com ele David Grossman inscreve-se no painel de escritores como Saramago, José Lezama Lima, ou mesmo Musil, autores para quem a escrita procura rivalizar com a vida em amplitude e complexidade, o que implica lentidão, sobreposição e volume. Personagens e ação, alma e história, discurso e filosofia, um desejo de totalidade. A dado momento, o autor pergunta-se a si mesmo, colocando as palavras na boca de Ora – “Como é que se conta uma vida inteira? Nem toda uma vida chegava. E como é que se começa?” (pág. 217) Mas chegando à última página, conclui-se que David Grossman sabe bem quanto pode e como proceder.

Sabe sobretudo como criar cenas inesquecíveis, que conduzem o leitor para o interior da ação, provocando arrepio, dor, deleite, levando-nos para o palco de um teatro anímico, real e vivo, de onde não podemos escapar. Pois mais do que uma questão de metáfora, Até ao Fim da Terra é sobretudo uma questão de metonímia. Uma descrição que prolonga a existência como ela é, usando os materiais reais, as matérias da verdade vivida. Por isso mesmo, este é um livro para ler com tempo. Se for lido à pressa, parecerá um livro desmedido. Se for lido devagar, será um livro grandioso. E felizmente que a tradução permite que entre o hebraico e o português, as subtilezas desta história magnífica não fiquem pelo caminho. A história de Ora e seus homens parece ter sido escrita diretamente na nossa língua.
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  in DN/Qi, 5 de maio 2012

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