quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"Inquieta-me, pois, a sua figura"

Angela, um Mito
em Construção

Lídia Jorge *

Quando a antiga ministra do Ambiente assumiu as funções de Chanceler da Alemanha, começou a constar em Lisboa que se tratava de uma figura demasiado rígida para se augurar alguma coisa de bom para o sucesso da Europa. O próprio Tratado de Lisboa, assinado no final de 2007, foi visto por muitos como uma estratégia de domínio sobre o espaço comunitário, manobra a que Portugal se prestava como criado, sorridente e agradecido. E falava-se já então de uma teia de dominação financeira que estaria a ser urdida a partir de Berlim. Mas eu tinha uma outra visão da chancelar. No princípio do seu mandato, havia passado cerca de meia hora a uns escassos metros da sua pessoa e achara-a interessante. Durante os discursos, Angela distraía-se, sorria para os sapatos, abandonava as mãos, e eu tive a ideia de ver no seu rosto alguma coisa de terno e de humano, alguma coisa de profundamente pacífico. Essa imagem ainda perdurou por algum tempo, e só começou a desvanecer-se quando a chanceler se pôs a enviar recados aos governos dos outros países, utilizando uma rude linguagem de mestre escola.

Aí, já a dúvida tinha começado a circular sobre se a chanceler estaria à altura de ser alguma coisa mais para além de chefe de governo do seu próprio país. Agora, o impasse que está criado diz-nos que dificilmente o será. É que Angela Merkel tem o dedo da História apontado à sua testa e não parece querer interpretar o papel decisivo que lhe foi reservado. E no entanto, não pode fugir a ele. A fragilidade que se vive na Europa leva a pensar que Angela tem no seu nome uma marca angélica que o Futuro não esquecerá, e quer queira quer não, está destinada a ser mito. Mas será que Angela irá ser portadora de uma asa escura que fará a ideia da Europa desmoronar-se? Ou pelo contrário? Desenrolará uma asa clara que fará reunir atrás de si os países europeus desunidos, reinventando a utopia política mais avançada do mundo de que os germânicos têm sido o motor? Para que lado cairá, então, o mito de Angela Merkel? No caso dos portugueses, sempre predispostos a visitarem o seu passado, para voluntariamente obedecerem e se humilharem, lembrar a História da Alemanha não está nos seus hábitos. Mas Angela Merkel, em nome dos alemães, deve saber que todos aqueles a quem a sua política exige ajustes de contas impossíveis, começam a ter de novo essa História no pensamento, e dar pretexto para que a imagem desse passado regresse é inaceitável. Inquieta-me, pois, a sua figura. De que lado ficará Angela Merkel, quando os discursos de circunstância terminarem e ela já não tiver tempo para olhar para a ponta dos seus sapatos?

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* Publicado a 30 de junho de 2012, no Frankfurter Allgemeine Zeitung

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