sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Crónica * 13 dias para passar de fera a majestade

Texto de 2002 (outubro)
O imperador

Lídia Jorge *

Sempre me hei-de lembrar, com muito gosto, da conferência que Lord Thomson of Monifieth, um ex-conselheiro da Britisth Independent Broadcasting Authorithy, proferiu em Lisboa, no início dos anos noventa. Nessa altura, discutia-se em Portugal a atribuição dos canais privados, e Lord Thomson vinha partilhar com os portugueses a experiência inglesa nesse domínio. Se bem me lembro, os seus conselhos estavam repletos de História. Na Grã-Bretanha a experiência dos canais privados remontava a 1952 e nós estávamos a discutir o nosso caso quarenta anos depois. Os seus conselhos estavam repletos de avisos e bom senso. E tinha razão. O futuro viria a demonstrar que mesmo na auto-controlada Grã-Bretanha, o comércio haveria de atingir, em flagrante, o equilíbrio e a qualidade que eram seus apanágios.

Entre nós, porém, nessa altura, a discussão era particular. Os economistas avisavam que Portugal não dispunha de capacidade comercial para sustentar três estações. A publicidade não chegaria para os três operadores. A menos que houvesse um milagre qualquer - e está provado que há poucos - a disputa pelas audiências iria ser darwiniana, iria fazer descer o nível da programação para patamares inimagináveis. E assim foi. Nessa altura se disse que, na disputa pela sobrevivência, a tendência seria a de os programas de entretenimento descerem aos níveis do grotesco e da obscenidade. Assim foi. Nessa altura também se disse que uma estação da Igreja, iria desprestigiar a Igreja e fazer um péssimo serviço. No nosso panorama, era o canal que estaria a mais, e assim foi. Os caminhos da TVI mostraram que um canal comercial da Igreja jamais seria da Igreja. E não foi. O I de Independente, que na altura também significava I de Igreja, depois de aventuras aberrantes, transformou-se hoje no Canal 4. Isto é, teve de o deixar de ser para ser igual às laicas. O tempo veio demonstrar que tinha razão quem se opunha a esse projecto. Nenhum canal religioso poderá vingar no Ocidente livre, a não ser que recorra às mixórdias televisivas mais repelentes de pregações infinitas e difusão de crendices. Mas na altura também se disse que a Informação, essa sim, iria ficar a ganhar. E ganhou. É indesmentível que a diversidade, a pluralidade dos pontos de vista, o volume de informação, a agilidade do jornalismo televisivo não tem comparação com os tempos anteriores. Pensar em recuar é um pesadelo. No entanto, na altura também se disse que o grotesco do entretenimento se iria misturar com a própria informação, que a certa altura, o espectáculo ficcional entraria e misturar-se-ia nos telejornais. Não se enganaram os que assim previam. Assistir à Informação televisiva é, hoje, assistir a um circo onde as melhores peças jornalísticas aparecem entremeadas com rugidos de leões e facadas na ilharga. Por volta das nove horas da noite, a ideia que se tem é de que o Mundo é só uma descida ao Inferno. Mas na altura também se sabia que iria demorar a bater no fundo, mas bateria. Já bateu no fundo? Já é possível escolher o que brilha no meio do lixo? Partir na direcção certa? Lembro-me das palavras de Soares Louro que previa tudo isto milimetricamente. Era só esperar para ver. Quem previu, e teve tanta razão antes de tempo, como terá passado este longo tempo?

Mas se me lembro em particular da conferência que Lord Thomson fez em Lisboa, por essa altura, é também por uma outra razão. É porque ele abriu essa conferência com uma história muito antiga que não perdeu actualidade. É uma história sobre coerência e isenção, oriunda num tempo muito anterior à televisão. Mas que poderia ser do tempo da televisão. Contou Lord Thomson of Monifieth, experiente em lidar com a memória, a fidelidade, a hesitação e os princípios que a regem, como certo jornal Francês do século XIX, o jornal “Le Moniteur” fez a cobertura da viagem de Napoleão, quando fugiu da ilha de Elba e marchou em direcção a Paris. Corria o ano de 1815. Nessa altura, os percursos eram demorados, não havia automóveis, nem telefones, nem faxes, nem satélites. Só cavalos. A comunicação era quase tão lenta quanto o mundo. Assim, foi possível, em escassos treze dias, os dias do avanço de Napoleão sobre Paris, os títulos do “Le Moniteur” terem ido mudando.

Mudaram assim, relatou ele. A 9 de Março de 1815, apareceu o seguinte título – “A Fera (Isto é, Napoleão) deixou a sua toca”. No dia 11 de Março – “O Monstro da Córsega pôs o pé em solo francês”. No dia 13 de Março – “O Torturador passou a noite em Grenoble”. A 18 de Março – “O tirano avança em direcção a Dijon”. A 19 de Março –“Bonaparte quer conquistar Paris, mas não o conseguirá”. A 20 de Março – O Imperador já chegou a Fontainebleau”. E dia 21? “O Libertador bate com força nas portas da cidade...” E no dia 22? No dia 22, podia ler-se no “Le Moniteur” - “Sua Majestade Imperial marchou hoje sobre Paris. Viva o Imperador!” Isto é – Entre a Ilha de Elba e Paris, Napoleão tinha passado de Fera e Monstro a Libertador, Majestade, Imperador. Lord Thomson não contou, porém, como titulou o jornal as vicissitudes de Napoleão Bonaparte quando voltou a cair em desgraça. Não contou, mas a gente sabe. É válido para todo o tipo de jornais e todo o tipo de majestades.

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* Redigida para a série "Dias Contados", transmitida pela RDP | Antena 2

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