domingo, 28 de outubro de 2012

A páginas tantas De Combateremos a Sombra

Do romance Combateremos a Sombra,
de Lídia Jorge (pág. 36 a 39)

Hombridade *


(...)

E ainda ao som dos estrondos que rasgavam aquele momento de silêncio duma forma impertinente, o jornalista apontou para a janela por onde o rumor entrava – “Se fôssemos pessoas decentes, não embarcávamos nisto. Pensar nesta extravagância faz doer a alma, pensar que por cada foguete que eles estoiram é um dia de trabalho de um alemão que eles queimam, rasga o coração. E quem diz um alemão diz um francês, um italiano, um inglês. E nós? Nós levantamo-nos da cama para queimarmos no ar os dias de trabalho dos outros como se nada fosse. Porque nos habituámos a viver miseravelmente, sem nos importarmos nem termos vergonha, e agora que outros nos sustentam, vivemos à sombra deles, dos válidos. Mendigos a viver à tripa-forra do produto da nossa mendicidade. E tudo isto porquê? Porque em termos de inteligência e hombridade, estamos anestesiados...” – O professor começou a impacientar-se, pensando em Maria Cristina, nas últimas palavras que ela havia dito no final da discussão – “Não me telefones, Osvaldo, não comeces com os teus truques de que já aqui vou a caminho, já aqui estou a chegar, quando ainda nem partiste do sítio…” Eram nove e vinte cinco e Elísio Passos falava de nada. Aquilo que dizia não passava dum discurso gasto. O que pretendia afinal aquela pessoa? E o jornalista, que continuava a falar com o mesma velocidade e o mesmo ciciamento do início, compreendeu a impaciência do anfitrião – “Passemos ao assunto, professor. O senhor está com pressa, eu também estou. Os minutos estão a passar...” E curvou-se para diante, expondo à luz da secretária a magnífica calva de onde saíam os dois ramos de cabelo em forma de pincéis fartos. Falando no tom próprio de quem começava a iniciar um epílogo, o visitante perguntou – “O professor sabe o que é um ovo?”

“Um ovo” – balbuciou Osvaldo Campos, admirado. “Sim, julgo que sei...” E acrescentou, cauteloso, receando que a roda girasse para o local imprevisto, de súbito previsto. “Claro que sei o que é um ovo...”

“Pois claro que sabe o que é um ovo” – respondeu o jornalista. “Mas talvez desconheça que toda esta situação ignominiosa que se vive neste país miserável, esta situação de dependência e dissipação, falta de rigor, de critério, e tudo o mais que queira acrescentar, tem origem em determinada casta de ovos que circula por aí e sobre os quais ninguém quer falar... ” E a sua voz ganhou uma nova espessura – “ Todos os tipos, que durante a maior parte das suas vidas escreveram ontem e hoje, referindo-se a hoje e amanhã, sabem o que este facto significa, mas estão calados. Pois talvez o senhor não saiba que Salazar tinha um galinheiro em São Bento, há quarenta anos atrás, e que aí criava galinhas, e que as galinhas punham ovos que ele mesmo vendia. Não acredita? Pois acredite - O Presidente do Concelho comerciava-os e não se coibia de o dizer. Vendia-os como se fosse um merceeiro de esquina. Mas não os vendia todos, professor. Havia ovos que o vígaro punha de parte com destinos especiais e que ele mesmo enumerava. Enchia cestos de cana inteiros, com palha no fundo, de ovos especiais. Eram ovos envenenados. Estramónio puro. E sabe o que fazia ele, depois, a esses cestos? Não sabe? – Mandava-os entregar no Supremo Tribunal de Justiça, na Assembleia Nacional, enviava-os à Nunciatura, ao Patriarcado, à Câmara Corporativa, à Câmara Municipal, e por aí adiante, para que os respectivos representantes os comessem e ficassem aniquilados. Mas o Juiz do Supremo, tanto quanto o Núncio Apostólico e o Cardeal Patriarca, e os outros, não eram estúpidos, pelo menos eram tão espertos quanto ele, e não os comeram, reconhecendo o material que tinham entre as mãos. Também os puseram debaixo de galinhas que os chocaram, que deram pintos, galos, galinhas e respectivos ovos, todos eles envenenados com estramónio, e por sua vez distribuíram-nos posteriormente pelas juntas de freguesia, regedorias, paróquias, grandes e pequenas comarcas, repartições públicas, registos de fazenda e finanças, e esses sim, pobres papalvos, foram-nos comendo e distribuindo por seus parentes e amigos, que os comeram também. Mas alguns resistiram, sabiam que ovos dados por essas mãos não eram bons ovos. Muitos como o meu pai, resistiram. Eu resisti desde criança, desde o dia em que o meu pai escarrou para cima do fato da Mocidade Portuguesa que a minha mãe me tinha comprado e eu assisti. Escarrou...” Os olhos do jornalista estavam vermelhos. O jornalista fez uma pausa, um suspiro – “Mas passado todo este tempo, sabe o que aconteceu, professor? Passado todo este tempo de vigilância, distraí-me e esta noite comi um...”

“Comeu um ovo desses?” – perguntou Osvaldo, juntando-se à inquebrantável lógica do jornalista sénior.

“Quando comeu?”

“Comi há coisa de uma hora, professor. Foi no Swing Bar, e até tenho aqui a prova...” – E Elísio Passos enfiou a mão num dos bolsos do smoking e retirou do seu interior fragmentos duma casca branca, unidos por uma pasta gelatinosa. No espaço correspondente ao bolso, o tecido preto apresentava uma mancha mais escura. “Esta é a casca do segundo, o que eu não cheguei a ingerir, porque o outro, infelizmente, já cá está...” – O jornalista transpirava. “Agora com uma nova droga, potentíssima, compreende? Grande problema…” A forma como fechava os olhos denunciava o grande esforço de domínio que exercia sobre o sentido circular da lógica que não queria deixar escapar. A sua calva pálida tinha-se coberto de gotas de suor. Falava rápido, falava alto. “Dois problemas, dois, professor...” – enunciava. “O facto em si, que precisa de ser denunciado imediatamente, para que as pessoas tomem as devidas precauções antes de ingerirem seja o que for, já que alguém pôs a circular de novo esse tipo de alimento. Esse é o primeiro problema. Segundo problema – Preciso urgentemente de passar num hospital...” E ao falar de si próprio, o sénior parecia embaraçado – “Professor, nos tempos que correm, quem tem coragem para denunciar um facto destes? Eu tenho a coragem, tenho a informação, tenho o know-how, mas posso estar neste momento mortalmente atingido e já não servir para nada...”

Elísio Passos tinha-se levantado do cadeirão e começara a dar passadas largas, no meio do gabinete – “Sinto-me envenenado, professor… Mas se eu aparecer num banco de hospital, numa noite como esta, contando este caso, quem vai acreditar? Preciso do seu apoio junto daquela gente do banco de urgência, necessito da sua garantia formal de que sou um homem em seu juízo perfeito...” Naquele momento, já havia algum tempo que os estoiros se tinham calado, mas da zona portuária saíam batidas rock que subiam a colina e entravam pelos vidros do consultório dentro enchendo o espaço de sons estridentes. Era como se um concerto dos Xutos & Pontapés acontecesse ali mesmo, no interior do prédio Goldoni. O jornalista consultou o relógio – “Desculpe, professor, sei que tem os minutos contados...”
(...)
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