Excepções e regra
Esta é uma bela homenagem que um jovem fotógrafo dedica às mulheres do seu país. No seu gesto de celebração, escusado será procurar outros motivos que não sejam os do  reconhecimento de que o caminho percorrido por cada uma destas figuras, até ao lugar de um certo destaque,  representa  um contraste  em face dos  muitos destinos que as precederam  e  a quem  a  vida anónima foi negando qualquer  menção  para  registo público.  Por umas e por outras, ficaremos a dever ao Gonçalo Cunha de Sá esse gesto  simbólico de justiça.  Mas não nos enganemos – Do ponto de vista da marcha do tempo e relevo dos seus actores, assim, em separado,  as mulheres só serão objecto de discurso enquanto não forem, elas mesmas, sujeitos da acção.
Quando  a questão de sexo  não for mais um factor de discriminação a nível dos actos cívicos e das acções públicas, as  representações  de género separadas  por salas e por livros, ainda próprias do nosso tempo, cairão em desuso,  e farão  com que os cidadãos futuros, olhando para trás, se lembrem de que houve  um mundo arcaico em que a afirmação das mulheres era excepção. E a  ideia de que houve em relação às mulheres tratamentos  de minoria deverá provocar riso, pela absurda contabilidade dos factos. Assim há-de ser, por certo, mas  não agora, nem aqui,  já que   alguns domínios fundamentais,  as mulheres  ainda não passam de  alegres recém-chegadas, e em muitos deles,   ainda  se contam  pelos dedos. 
Procurando bem, há explicações para tudo. Para esta assimetria imposta e ao mesmo tempo consentida, também há.  Desde a explicação induzida pelo vínculo que a Biologia empresta aos corpos,  à explicação  deduzida a partir da  diferença  que a vontade de um bom Deus empresta às almas. Segundo a narrativa mais feérica que certo  neo-platonismo engendrou num jogo de assimetria entre luz e penumbra,  aos homens  caber-lhes-ia  fazer  vingar a imperfeição da vida,  invectivando  Deus através da  revolta  que conduz à construção da obra, um acto de soberba e  insurreição, que assentaria bem ao  rival  terreno.  A mulher, pelo contrário, colaboradora com a divindade  pela gestação dos filhos,  faria de sua pessoa o vaso da  procriação  por vontade alheia,  aceitaria na sua própria carne a criação do Outro, dispensando-se assim de se envolver na dissenção que preside ao acto de ousadia  do empreendedor e do artista. A mulher seria votada a obedecer, fazendo do acto de subserviência  o material da sua genuína construção. A separação das águas através deste ângulo,  muito mais enraizado  do que pode parecer à primeira vista, dá que pensar.
Agustina Bessa-Luís, que não poupou  fustigar o sinal interior da acomodação das mulheres,  referiu-se ao hábito de obediência como uma economia do comportamento, do  qual  elas  retirariam  lucros  de bom proveito, ainda que de mau exemplo, pôs-nos de sobreaviso sobre as mansas. Fez questão de nos fazer desconfiar das vestais sentadas que se sentiriam  razoavelmente bem sucedidas  nas penumbras dos seus templos. No que não deixa de  ter razão. Em todos os tempos, há quem prefira colaborar  com a apatia em troca de protecção. Mas essa não é a regra comum. 
Se essa regra fosse  geral,  seria caso para dizer que por qualquer outra razão, as histórias das  fadas têm os seus limites temporais afixados pelo selo de consumo, e os  seus prazos de validade estão esgotados. Ao longo do  Século XIX,  o Ocidente  pôs em marcha a mais vultuosa  emancipação dos escravos de que há  registo,  e no seio deles -  ou apenas como eles,  os escravos -  as mulheres aprenderam  a  ler, a escrever e a  contar  as suas vidas pelo lado contrário do que era suposto. Onde estava a finalidade, colocaram a causa, e onde estava  o enigma, colocaram o argumento.  Para inverter os dados do destino, Simone de Beauvoire  escreveu  a meio do século passado, essa frase paradoxal que contém em si  um quiasmo irresolúvel e no entanto resultou inaugural  pois denuncia o acrescento duma falsa  natureza à natureza  propriamente dita  – “Não nascemos  mulheres, tornamo-nos  mulheres”. Hoje em dia, de repetida, o seu sentido deixou de  ter a relevância, como sempre acontece com  as afirmações que se transformam em cliché,  mas é de supor que muitas das mulheres aqui fotografadas devam ter  tido essa frase como antídoto contra a formatação dos seus percursos. Pois é  bem verdade que  nem sempre a história da afirmação das mulheres coincide com a história da consciência feminista, mas a sua  relação de sintonia e sintoma, causa e efeito, o papel  da  dissensão  não pode ser ignorado.
Também neste campo, o caso português é particular. É costume sublinhar a debilidade da reivindicação portuguesa em contraste com a energia dos movimentos reivindicativos próprios de outras culturas, e com razão. Mas num país blindado pela censura, pela moral  conservadora e punitiva,  e por uma instrução  roçando o nível do miserável, a acção de grupos de mulheres  como Adelaide Cabete e Ana de Castro Osório, durante a Primeira República, bem como  o trabalho isolado e  notável de Maria  Lamas,  ou a  singularidade do  caso das Novas  Cartas Portuguesas -  o selo mais emblemático da  afirmação da personalidade das mulheres portuguesas modernas -   foram  pontos altos que  não só precederam e anunciaram a Democracia, mas sobretudo se tornaram  detonadores de mudanças de mentalidade e se inscreveram na nova cultura de libertação e autonomia em crescendo que  vivemos nos dias de hoje. Além de que  milhares e milhares de outras mulheres,  umas perto da militância feminista, outras apenas pela afirmação da  sua dignidade, conseguiram combater e ultrapassar o meio atávico português, demasiado original no preconceito,  mesmo quando apenas comparado  com o  quadro das culturas conservadoras do Sul da Europa. Para essas, as semi-anónimas, ou anónimas, nunca haverá maneira de lhes criar uma galeria de retratos dispostos num livro ou numa sala. Como não há hipótese de nomear os homens cultos, e os não cultos mas justos e sensíveis, que  ao longo das últimas décadas compreenderam que ajudar a dignificar a vidas das mulheres é uma quota  antecipada que se paga em conjunto para  uma habitação mais digna sobre  Terra.
Aliás, estas fotografias, captadas por um homem jovem, vêm dizer isso mesmo – que as duas humanidades,  na totalidade, são as duas mães da Humanidade, e que elas não se afirmam nem se salvam se não estiverem em conjunto. Sabemos que  quanto mais pobres, mais teocráticas, mais ditatoriais  forem as sociedades, mais subalterno será o seu  papel. Por isso mesmo, as mulheres portuguesas que pela História ficaram durante tanto tempo dependentes das sombras e das metáforas para dizerem eu existo, poderão vir a ser importantes, na aproximação,  encontro e  diálogo entre culturas e modos de vida diferentes. As mulheres portuguesas, para quem todo um  passado baço e submisso  ainda é  tão presente,  por  irrecusável dever  de semelhança,  poderão lutar pelos Direitos das Mulheres, como parte integrante e inseparável, dos  mais elementares Direitos Humanos.
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* Para o álbum com fotografias de Gonçalo Cunha de Sá, 
editado paralelamente à exposição que percorreu o País
 “100 Mulheres Portuguesas”, com início a 3 de março de 2010
cuja venda reverteu para a associação Mulheres Contra a Violência

 
 
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