terça-feira, 10 de novembro de 2009

Prefácio * Uma dedada de matérias várias

Memórias do longe
Transparências

Lídia Jorge *

LONGE é uma palavra importante para Gracinda Candeias. O que ela mais recorda aconteceu longe, o que mais ama fica longe, o que inventa e pinta fica ao longe. Quando precisa de fazer um parênteses, vai para longe, e quando regressa é de lá que traz os novos projectos. Sucede que durante o percurso para chegar longe, ela toma um estojo miniatura que cabe na palma da mão, e em qualquer lugar remoto, a Gracinda desenha e pinta. Ou por outras palavras, é na distância que ela encontra o impulso e o motivo.

O que quer dizer que a transfiguração vem do percurso, do trânsito acontecido no tempo e no espaço, do intervalo que decorre entre o mundo primitivo e o dito civilizado. Da distância entre a Europa e o Oriente, a Europa e a África. Da África do Norte e do deserto, ou de Angola onde nasceu e mantém a sua raiz. A distância no tempo faz-se entre o tempo presente e o passado próximo, ou distante, e faz-se por continuidade, por mistura e por coabitação. Assim, quem conhece a vida e a forma de trabalho de Gracinda Candeias adivinha a sua obra. E quem conhece a obra, adivinha-lhe a vida, não por inteiro, mas quase.

São de longe os seus estímulos, as flores, os pássaros, as nuvens, as árvores, os rios, as cores e os sentimentos de deslumbramento, nostalgia, recordação, memória de odores e vislumbres. O transporte da sensualidade em torno do mundo, da terra e do céu. E também os materiais são de longe – os papéis, os pigmentos, as colas, os paus, os lacres, os selos. E de longe parecem ser arrancadas as formas que expressa – Os pássaros estilizam-se na forma do ovo, as nuvens alargam-se com a transparência dos céus, os calhaus ficaram espalhados no deserto que se remove em nuvens. Como se a forma se tivesse rendido ao impulso da cor, e a cor fosse a mais depurada sobrevivência da experiência vivida.

Então é preciso esquecer o percurso, essa liturgia que a Gracinda percorre antes de criar, isto é, aproximamo-nos da obra feita. E a aproximação revela que a depuração não é apenas um prolongamento, um encosto à Natureza, mãe das formas, uma sequência pacífica do prolongamento do espaço deserto de África, ou do espaço profuso do Oriente. Existe uma reacção à forma primitiva, uma revolta contra ela, uma resposta, uma aposta numa outra forma que é só sua e se sobrepõe à estilização do mundo feito. Vistas de perto, essas formas relatam uma história íntima, e o longe assenta numa experiência sentida.

Então será normal pensar que existe, sobre os seus quadros, o desenho de um percurso biográfico. E isso valoriza? Desvaloriza? – Não interessa. No interior das suas transparências, fica uma dedada de matérias várias. A abstracção de Gracinda Candeias assenta num desvario contido, enquadrado como se fosse uma vitrina ou uma redoma, sustido, poupado, transfigurado em manchas significativas. Formas como se fossem apenas formas, e no entanto, histórias. Histórias em repouso serenado, sensualidade resguardada, vidro ferido.

De longe, para longe. E no intervalo, a proximidade inscrita. O que conheço de Gracinda Candeias diz-me que não se afastará deste processo. O Pacífico, o Índico, e especialmente África, Angola, chamam-na.

Uma peregrinação da existência. Pelo que sei, o augúrio da sua expressão plena vem a caminho.
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* Texto para o álbum de serigrafias de Gracinda Candeias,
"Datura e suas Senescências"
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