quarta-feira, 7 de abril de 2010

Crónica * Datado e intemporal

Quando os dias voam

Lídia Jorge *
23 de Março
Voo Nocturno em direcção a Brasília

Esta é a realidade. Vai decorrer uma Conferência em Brasília, e eu viajo por causa da Conferência, mas não vou para essa Conferência. Complicado? Não. Se dividirmos a participação num encontro entre pensamento e acção, alguém deve ficar no lugar extraterritorial onde se situa a simples matéria prima. Mas só dou pela sobreposição quando começo a encontrar os reais intérpretes da Conferência no Aeroporto de Lisboa. Mostro-lhes o meu papel, e para grande surpresa dos organizadores da Conferência, ele indica-lhes que, lateralmente, à margem do seu programa, existe um grupo de pessoas que irá falar de uma outra forma sobre a questão da Língua. Os organizadores desconheciam, e eu vejo nesse desencontro um toque quase divino. Quem alguma vez se gabou de ter organizado alguma coisa na perfeição, desconhece o que é fomentar a liberdade junto dos desorganizados. Ali, de pé, depois do check-in, a minha ideia é esta – Quanto mais fora das malhas, mais livre. Não é por nada, mas o que me pedem é tão somente isto – Fale durante vinte minutos sobre Criatividade e Língua. Sinto-me em paz. Existe só uma Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial. No meu programa, esse título não existe.

24 de Março
Madrugada em Brasília

Então Adriano Jordão vem ao meu encontro, muito admirado. O que faz você aqui? Vem para uma conferência? Qual conferência? Por favor, mostre-me o seu papel. Mas o importante não é o que se passa em torno da Conferência. É a forma entusiasta como o pianista vai mostrando a cidade de Brasília espalhada pela terra, à luz da madrugada. Sempre que entro em Brasília, o mesmo assombro me pega. Que figura humana está projectada para o futuro de Brasília? Não, não é um homem patinador, é um homem voador. Que me perdoe o Óscar Niemeyer que há mais de meio século não pára de a desenhar, mas onde ele acha que irão existir rodas, eu colocarei asas. Nesse momento, Óscar e a sua espiritualíssima concepção material da cidade entram na discussão. Vamos no carro do Adriano. Para trás ficam os Palácios, e além o Teatro em forma de mastaba, mais além a Catedral em reparação, o Museu como um ovo caído, a seguir a Biblioteca Nacional, tudo espalhado pelo chão do cerrado. E de repente, o Adriano diz, todo sorridente - “Sabem o que a minha mãe pensava desta cidade ? Que era uma instalação – Brasília, uma instalação…”

E o pianista, conselheiro cultural em Brasília, volta-se para trás, cheio de contentamento. Mas acaso sabe Adriano Jordão que está a desvendar um enigma de autoria? Acaso saberá que, ao longo destes últimos anos, essa frase tem sido atribuída a várias outras mães, que não a sua? E Adriano, inocente do assunto, vai fornecendo detalhes, e eu descubro a verdadeira autora da imagem, com emoção. Afinal, quem viu nesta cidade uma instalação interpretou na perfeição a dimensão da sua grandeza, e da sua beleza, mas também a sua incapacidade de ser totalmente útil, a sua habitabilidade e inabitabilidade, a sua gratuitidade e a sua funcionalidade mais estética do que ética e mais artística do que prática. Uma instalação, um poema feito de uma palavra só, de tal forma bem esgalhado que muitos a atribuem a várias mães. Pergunto então como se chama a sua mãe.

“Chamava-se Raquel Jordão”, diz Adriano Jordão, e só então ele conta que regressou naquele mesmo avião em que viajámos durante a noite porque foi a Portugal despedir-se do corpo da sua mãe. Ele está a receber-nos, assim, à chegada, sem dormir e sem se deitar. E depois entramos na sua casa e ele mostra uma fotografia da mãe. Agora a fotografia está sobre o piano de Adriano. A fotografia representa o perfil duma senhora muito jovem, diante dum homem com chapéu cardinalício e de um outro, trajado de branco, com o peito repleto de medalhas militares. Ela está de lado e escuta o que lhe dizem ambos. Nem se lhe vê bem o rosto, mas foi essa a fotografia que ela mesma escolheu para se apresentar à vida, daqui em diante. Adriano Jordão não dorme há várias noites. Está comovido. Adriano Jordão não chora pela mãe, transpira pela mãe. Grandes bagas de suor correm-lhe pela cara. Grandes lágrimas. Ele pega no guardanapo e passa-o pela boca, pela cabeça, pousa-o lá, no alto da cabeça e deixa-o ficar. De súbito, numa casa de Brasília anjos sobem e descem. Silêncio, anjos como os de Chagall sobrevoam Brasília.

26 de Março
O Show da Divina

Bem me pareceu que tudo iria correr bem. Correu bem a abertura, no Itamaraty. Quando o nome de José Aparecido de Oliveira surgia, ao longo do discurso de Celso Amorim, as pessoas aplaudiam como se estivesse ali, em pessoa, o pioneiro que nunca foi devidamente reconhecido. Palmas para ele, o desenhador de tudo. Atrás do lugar do discurso, fica a Exposição sobre a Língua. Deambulamos entre textos. Um dia, em algum lugar do Mundo, há-de haver um portal com uma efígie do José Aparecido que diga – Foi ele quem teve a ideia de unir os vários pedaços da Terra que falam esta mesma Língua. As minhas palmas vão para ele. E depois, o show da Bethânia, cada vez mais perfeita, o seu cabelo cada vez mais bonito. A sua voz cada vez mais grave e mais reverberada, como se tivesse dentro da garganta cordas e tambores, e os metais fossem agora muitos mais. Que bom que foi escutarmos a divina. Cravos vermelhos? Eram às caixas, pelo palco. Eu bem disse que iria correr bem.

Economia brasileira

Entusiasmada, uma brasileira começa a recitar Pessoa – “Deus querre, o homem sonha, a obra naisce…” É então que o jovem professor Edvaldo Bergamo vem dizer que há ainda uma forma mais abreviada de falar da utopia. No meio do ruído, ele conta como Jucelino Kubichek foi mais sóbrio. No princípio de Brasília, poucos acreditavam que o lago artificial alguma vez enchesse. Quando choveu e a água escorreu dos córregos, e o lago Panamoá pela primeira vez foi lago e ficou raso, dizem que Jucelino enviou um telegrama a um jornalista seu detractor, nestes termos – “Encheu. Viu?”

27 de Março.
Breve palavra de acesso

Finalmente, o programa literário paralelo à Conferência. O que se espera dessas seis mesas organizadas pelo poeta Felipe Fortuna? Como não pode deixar de ser, muito e muito pouco, por certo inconclusivo, ao arrepio da Conferência. Durante dois dias, haverá tradutores, editores, escritores, músicos, autores de blogues e um vasto público. Haverá. Mas antes eu preciso de entrar num outro lugar do Centro Cultural Banco do Brasil. Quero ver as esculturas dos irmãos Pandolfo, OsGemeos Vertigem, de que tanto se fala. Quero ver com os meus olhos. Entro e o mundo voa. Não há explicação possível. Pássaros de sonho, carros forrados de todo o tipo de fantasia, rostos-lua e luas caixa que podemos conduzir e habitar, e no meio desse arsenal de mundo lúdico, um objecto cúbico onde a pessoa enfia a cabeça e vê o seu rosto multiplicado até ao infinito. Música irrompe do interior da nossa cabeça e não se sabe como.

Mal consigo sair daquele espaço enfeitiçado. Agora sim. Agora posso subir até ao auditório com a certeza absoluta de que lá onde a imaginação chega, chega a Língua.

Muita gente, muita alegria, muita expectativa, muito calor e são sete horas. Não faz mal. Aconteça o que acontecer, agora também eu já posso dizer aquela breve palavra de acesso à conclusão - “Viu?” E foi isso mesmo que, afinal, aconteceu. Quanto ao resto, ainda agora é domingo, há que esperar para ver. O que for soará, fora dos campos de Brasília.

28 de Março
Despedida

Quando os dias voam é assim. No restaurante do hotel, uma pessoa vem ao meu encontro com um prato de fruta na mão. A fruta é vermelha e a pessoa é mulher. A pessoa diz-me o seu nome e eu fixo-o, já o ouvi e estremeço por receio de errar. Sim, já errei, já julguei que era alguém que não era, e eu misturo o momento da despedida com as minhas faltas cometidas em Brasília. Conheço-me. Começa o momento do arrependimento. A pessoa diz-me que no dia anterior esteve lá sentada, no meio do calor, a ouvir-nos, e eu começo a ficar mais pequena do que a cadeira onde me sento. Começo a pensar que toda a euforia foi para nada, e que o meu lugar era em casa, metida na sombra dos objectos que não falam. Mas a pessoa, que afinal não come a fruta, começa a dizer que me agradece. Que nunca tinha pensado na hipótese de alguém desejar ser ao mesmo tempo homem, mulher e criança, velho e novo, rei e vassalo, móvel antigo da nossa casa e parede onde ele se encosta, cão e lobo, nuvem e pasto, e até o nojento réptil agachado no chão, até ele qualquer escritor gostaria de experimentar ser.

Sim, de facto eu disse isso mesmo, de passagem, apenas para criar um intervalo, entre os assuntos da Língua, e foi só isso que a pessoa, que está na minha frente, fixou. E porquê? Porque a pessoa, que deixou a meio o prato da fruta, diz que também já experimentou o desejo de ser, por um minuto, o réptil nojento que toda a gente abomina. A pessoa diz que veio ter comigo porque somos irmãs, que aquilo que apenas nos distingue é que, na sua óptica, eu consigo dizer em público exactamente o que ela sente e não diz – Diz que ser por um momento a criatura mais repelente, que Deus deixou à face da Terra, é apenas a forma de desejarmos ser tudo. E só depois, a pessoa termina o seu prato de fruta vermelha.
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* "Diário", in Jornal de Letras (N.º 1031 - 7 a 20 de abril de 2010)
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