terça-feira, 23 de outubro de 2012

É que os dias começam a apertar

A razão dos simples

Eles passarão. Eu passarinho!
Mário Quintana

Lídia Jorge *

1. Os dias que correm ensinam-nos o que não julgávamos precisar de aprender. De um momento para o outro, a realidade mostra-nos que, enquanto a passagem do estado de miséria à prosperidade se processa de modo demasiado lento, a passagem da prosperidade à miséria pode seguir um percurso vertiginosamente rápido.

O que hoje se está a viver assemelha-se ao pesadelo clássico da pessoa que segue vestida por uma praça e de súbito começa a perder as roupas. Quanto mais procura cobrir-se mais elas voam, até se ficar nu. O pesadelo diz respeito ao mundo, não é só nosso, mas o caso português tem contornos muito próprios, e se até agora algum motivo há para nos regozijarmos será só pelo facto de os portugueses, como sempre, serem um caso de sucesso na resistência à fome.

2. É preciso reconhecer que a crise se instalou na casa portuguesa em clima de decepção, mas sob o signo da concórdia e até de uma certa esperança.

A esperança provinha da ideia de que este momento de aperto poderia oferecer uma oportunidade para se corrigirem os erros que nos levaram até aqui, o desperdício, a má distribuição da renda, o laxismo, a acumulação de privilégios, e tudo o mais. Até a esperança de que o sistema judicial pudesse tomar um novo caminho atravessou a nossa ilusão. Para além da ideia de que um ambiente de menos agressividade poderia facilitar esses tipo de correções. Com essa esperança se partiu para sacrifícios de toda a natureza em clima de aceitação. Aos portugueses foram aplicadas medidas drásticas sem um sussurro da parte dos visados. Visto de fora, o nosso comportamento tem sido exemplar, e de certo modo até comovente. Neste momento, porém, o pacto de esperança e de concórdia que nos silenciou não pode deixar de estar quebrado.

Não se trata apenas do assalto redobrado a toda a população, o anúncio assumido da ineficácia das medidas, a injustiça relativa de que elas enfermam, e tudo o mais que se sabe. Nem sequer do pressuposto ofensivo de que as pessoas são abstrações sem coração nem cérebro, e que devem estar expostas a todo o tipo de expolição sob a ameaça de que ao contrário só se vislumbrará a catástrofe. Ou o pressuposto de que devem estar caladas, de outro modo serão perniciosas e agirão contra a pátria. Ou a ideia de que a Economia e as contas são matéria a que a razão dos simples não atinge. Mais do que tudo isso, trata-se, sobretudo, do desconhecimento, por parte dos actuais dirigentes, do funcionamento de uma sociedade moderna.

Agora está à vista por que razão aquilo que pareciam falhas neste governo, afinal, eram erros. Erros na fusão de ministérios que não deveriam ter sido fundidos, pessoas para os conduzirem que não estão à altura nem de um governo em tempo normal, quanto mais em estado de crise, manutenção de figuras descredibilizadas colocadas no topo da hierarquia governamental, entrega de dossiers sensíveis a figuras suspeitas. De tal modo que a ideia que se tem é de que o país não está só em estado de crise, mas à deriva, na mão de pessoas que sem dúvida estudaram muito mas leram pouco. Estas situações costumam ter desenvolvimentos mais ou menos previsíveis. Mark Twain falava de que a História não se repete mas rima. No momento que passa, é preciso tomar cuidado com as rimas. Os simples podem não saber de economia, mas conhecem na pele o que é a injustiça relativa.

3. É que os dias começam a apertar. Agora deitamo-nos e levantamo-nos, com poucas alternativas pela frente. Na noite dos pesadelos pode-se imaginar que o primeiro ministro poderia fazer uma remodelação do seu governo. Mas como, se nesta última semana ele mesmo surgiu aos olhos do país como um remodelável?

Outras perguntas se impõem. Tem esta maioria capacidade para gerar no seu espaço um governo alternativo? Dever-se-ia chegar ao extremo de exigir um governo de salvação nacional? É possível fazer o Presidente da República mover-se para alguma outra solução sem entretanto se desfazer o parlamento? Ou, simplesmente, ainda será possível este governo colar os cacos, regressar a um entendimento com a oposição de forma a inverter este caminho deslizante para um buraco grego? Parar de perseguir as pessoas deixando-lhes na algibeira o suficiente de modo a não secar de todo a economia aquisitiva para que não pare a produtiva? Sabemos que todos os que nos conduzem a este desfecho sempre passarão bem, e nós passaremos mal. Mas é preciso não menosprezar o poder dos simples. Não estamos mais no quadro do Estado Novo, quando a população analfabeta e desinformada não dispunha de referências para se comparar. Também para nós o mundo mudou cento e oitenta graus e hoje somos alguém na Europa. Por isso a própria Europa precisa de conhecer a verdade sobre o que se passa em Portugal para que ela mesma se possa acautelar, e parece que, a partir daqui, só os simples, afinal, podem ser a voz autêntica que avisa os outros antes que também caiam.
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* in Público, 17 setembro 2012
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2 comentários :

  1. Aquilo que é triste é que vivendo nós graves momentos de crise que colocam as pessoas e o país numa situação difícil e dolorosa, sem que se vislumbre, ainda, uma verdadeira luz ao fundo do túnel que nos permita sonhar que dias melhores virão. Dizia eu, aquilo que é triste é que os "cultos", os que fazem e desfazem a informação, as figuras públicas e todos os falam ou escrevem "belas " palavras de revolta, de crítica e de solidariedade com um povo em sofrimento, não tenham, até à data, apresentado uma única solução, uma única forma de fazer melhor as coisas, uma única maneira de realista e fundamentada, alternativa à atual, de fazer frente à situação grave que vivemos.
    Porque esta é a verdade. O que ninguém parece querer aceitar ou compreender, porque é difícil e doloroso, é que nós estamos a viver um momento difícil nas nossas vidas, ao qual não podemos fugir, para o qual não existem soluções mágicas, nem respostas fáceis ou indolores.
    É por isso que "belas" prosas como a sua ainda mais me entristecem,porque embora muitas e bem esgalhadas palavras usem, de facto não modificam nada, não apresentam soluções, não alteram nada, não significam nada, não servem para nada e espremidas não deitam nada.

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  2. Teresa Varela, compreende-se o que diz e partilhamos, mas isso não se aplica ao texto que Lídia Jorge escreveu, quanto a nós, lúcido e corajoso. A um escritor ou escritora não se pede que seja ministro das Finanças, deputado, ou mesmo especialista em salvação da pátria. Pede-se-lhe que use a sua voz em nome dos que a não têm, ou tendo não a sabem ou não podem usar. Foi isso o que Lídia Jorge, neste texto fez. Até podia estar calada como tantos mas falou e bem.

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