quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Crónica * Têm dificuldade em entender o nosso adiamento

Alemães em nossa casa

Lídia Jorge *

de Karl Heinz Stock
1. Sobre a minha mesa, existe uma escultura de cor vermelha, uma mulherzinha redonda, boteriana, braços no ar, que por vezes penso ser a imagem perfeita da evasão, uma figura de resina, equilibrada sobre uma perna só. Quem a esculpiu foi Karl Heinz Stock, um alemão, que a associa ao espírito do vinho da sua Quinta dos Vales, em Estômbar. Ofereceu-ma pela ocasião do Lit.Algarve. 2010, o primeiro e único festival de Literatura que aconteceu no Algarve.

Quem promoveu esse encontro foi Barbara Fellgiebel, uma residente alemã. O seu esforço foi notável, e talvez volte a ter segunda edição, para o ano que vem. Pelo menos foi prometido, numa noite em que se encontravam, no Algarve, duas divulgadoras de autores portugueses, Karin von Schweder-Shreiner e Maralde Meyer-Minnemann. Duas alemãs que gostam de Portugal. Aqui, nas Courelinhas, abro a janela, e a primeira casa visitável é de um casal alemão, a quem no Verão oferecemos ameixas, de quem recebemos compotas no Outono. São pessoas de idade, mas ele pilota um avião, ela faz jardinagem, e sempre falam do futuro, nunca do passado. O mesmo acontecia com outros alemães que já aqui moraram e nos ofereceram a sua companhia.

2. Era o caso de Kurt Dahler, o nosso vizinho a Nascente. Kurt fora um soldado às ordens de Hitler quando tinha vinte anos, foi-o no terreno mas nunca na alma. Em consequência, escolheu a Suíça como segunda pátria. Quando se deu a reunificação, já sentado à lareira, em Alcaria, ele não queria uma Alemanha, preferia duas. A Poente, moravam os Swinton, judeus alemães que tinham passado por Portugal, deportados, quando eram crianças, e haviam ficado com a ideia de um país com céu azul, e uma gente simples que lhes havia consentido a viagem. Regressaram para passar aqui as suas últimas décadas. Ao Sábado, os dois casais encontravam-se, tomavam bebidas à beira da piscina, mas nunca falavam do passado que os colocava em territórios contrários. Preferiam o futuro.

3. O futuro é este momento que vivemos. Eles já cá não estão, os seus netos, nascidos por aqui, contudo, frequentam as nossas escolas, que também são deles. Mas eu espero que, em alguns hábitos, continuem mais netos dos seus avós alemães que dos seus avós portugueses. Não há como confundir. Entre nós, os alemães editam revistas, criam associações e clubes de Literatura e Cinema, enchem os lugares nos concertos de jazz, são experts em música erudita, participam em debates, inscrevem-se nas bibliotecas, e acham muito estranho que os portugueses leiam tão poucos livros. Quem priva com os alemães que escolheram viver connosco, sabe que são rigorosos, escrupulosos, que têm dificuldade em entender o nosso adiamento, a nossa disfunção entre promessa e cumprimento.

Além disso, eles povoaram terrenos que nós abandonámos, compraram casas que haviam sido doadas às raposas, deram vida e luz a zonas mortas. E a maior prova é que, sob o nome de um alemão, Volker Huber, e sua mulher Marie, foi fundado há trinta anos o Centro Cultural de São Lourenço, uma casa única, pioneira, que colocou Almancil na rota da Arte internacional e do debate local. Por isso mesmo, não gosto que a propósito da política defensiva de Angela Merkel, se voltem a dizer palavras que não se ouviam há muitos anos.

4. É injusto baralhar tudo, confundir governos com estados, e sobretudo atribuir a pessoas, intérpretes de histórias diferenciadas e irrepetíveis, essa estranha entidade abstracta que se chama a alma de um povo, alguma coisa onde se vão pendurando os erros de alguns para estigma de todos. Se essa confusão é inconveniente seja onde for, é-o particularmente em Portugal, e mais inconveniente ainda numa região como o Algarve que faz da convivialidade a sua marca, e dela a matéria da sua própria sobrevivência. Alemães comuns, portugueses comuns, afinal, metidos na barca comum da mesma deriva monumental. Tal como os Dahler e os Swinton bem o sabiam, há uma década atrás, também nós não estamos em tempo de ir buscar aos farrapos da História palavras que nos separem. Antes pelo contrário.
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* na edição impressa do Público (24 de agosto de 2011)
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