terça-feira, 31 de julho de 2007

Crónica * Esse sonho de língua que nos uniria a todos.

Telavive

Lídia Jorge *

Foto de Arile Schalit
É preciso tomar cuidado - Se em Israel dissermos que Lisboa é uma cidade branca, o nosso interlocutor poderá pensar que lhe estamos a roubar alguma coisa de precioso. Para os israelitas cidade branca é só uma e chama-se TELAVIVE. A mistura clara do sal, do sol e do solo formam essa impressão de brancura que lhes dá razão. As varandas de cimento que desenham o perfil da cidade, desenhada ao longo duma praia do Mediterrâneo, emprestam-lhe esse halo de claridade que lhe dá prioridade nas questões da brancura. Ainda não pusemos o pé em solo israelita, e já sabemos que a Cidade Branca, desde 2003 é considerada Património Mundial da Unesco. Ainda não mostrámos o passaporte e já sabemos que Telavive significa Colina da Primavera, com tudo o que o nome traz de brilhante. Aliás, o próprio aeroporto, uma construção acabada de estrear, lá tem a brancura nas paredes. A entrada nesse recinto de aviões é inconfundível – a pedra branca que a forra parece levar-nos para fora do tempo.

Mas o que mais atrai em Telavive são os recantos que marcam a geometria da sua história. Não a grande História, essa que tem um peso de letras e linhas tão forte que nelas confluem ao mesmo tempo as atribulações e os sonhos de todo o Século XX, antes a história das pessoas concretas e comuns que andam nas ruas, semelhantes a todas as pessoas do mundo. Mais que visitar o magnífico Teatro Habimah, auditórios, ministérios e galerias, do que eu mais gostei foi de calcorrear as ruas ladeadas pelas construções Bauhaus, o centro da alma de Telavive, e aí encontrar uma cidade que se sonhou ordenada, branca, de linhas simples, erguidas ao futuro dos anos 30 a 50 do século passado. Em nenhuma outra cidade se encontra um mostruário tão vasto e tão completo do sonho modernista de cidade. Um outro recanto que não esqueço é a própria Praça Dizengof onde se faz o mercado de Sexta Feira. Aí encontrei pessoas expondo preciosidades e ninharias como em todos os mercados de sextas-feiras. Aí comprei um alfinete de pequenas pérolas duma judia inglesa que se desfazia dos seus bens para recolher a um lar, e uma bolsa a um beduíno que os trazia duma montanha perto do Tiberíades. Aí os pratinhos com os peixes da multiplicação no Sermão da Montanha empilhavam-se para os crentes cristãos. Aí os saquinhos de folhas de rosa para o chá e essência para a salada, eram vendidos pelos árabes. O mercado do povo onde se entra vigiado e se sai vigiado, como vai ser o nosso futuro em toda a parte do Mundo, é um verdadeiro bazar, essa palavra que significa mistura. A nossa História futura cada vez mais como um grande bazar. E à noite, o peixe é maravilhoso, à mesa do Beny Hadayag, isto é, Beny, o pescador, ali no antigo porto, servido por gente que fala uma língua eslava de mistura com o hebraico. Mas mesmo assim, no que eu penso é no Mercado de Sexta-feira, ali onde se junta a vida dos homens, separados pelas História, unidos pelas histórias das suas vidas. E quando se deixa o grande e belo aeroporto de Telavive, tem-se saudade dum futuro branco para todos. Que os israelitas desculpem que o seu povo e as suas cidades nunca desencadeiem pensamentos apenas sobre o seu povo e as suas cidades, antes ofereçam a partir de si o início de pensamentos sobre todas as outras cidades do mundo. E acaso viajar não é isso? Reconhecer em todos os outros lugares a raiz do nosso próprio mundo? Por alguma coisa, perto da Praça Dizengof existe uma placa que evoca o nome de Zamenhof, o criador do esperanto, esse sonho de língua que nos uniria a todos.

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* in Público|Fugas, 31 de julho de 2007


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