Um livro da minha vida
Lídia Jorge *
As Velas Ardem até ao Fim é um dos livros de ficção mais  belos que li na minha vida.  Foi um poeta catalão quem me chamou a atenção para o seu autor, o húngaro Sándor Márai, aqui há uns anos.  A edição espanhola que então me ofereceu e guardo com imenso carinho tem  um título diferente – O Último Encontro. Trata-se também duma boa tradução, mas felizmente que o título em português é mais íntimo e revelador da profundidade e da  magia poética da obra.
É difícil resumi-la. Trata-se da  história da amizade entre dois jovens aristocratas no princípio do século XX, aproximados  pela mulher de um deles, a bela  Krisztina, e também por ela afastados, sem que nunca tenham conseguido esquecer nem o sentimento que os uniu nem  os motivos dramáticos por que se separaram. O encontro de dois velhos amigos  que não se falam há quarenta anos,  serve para um ajuste de contas  sobre esse  episódio do seu passado, durante uma refeição especial. É esse prolongado  jantar,  uma espécie de longa  cena de teatro que se desenrola durante uma noite, que permite escutar o  fio  narrador de uma voz, só de vez em quando interpolada, durante  a qual as velas vão ardendo até ao fim.
Todo o livro, um  pequeno livro de  cento cinquenta páginas,  está escrito com sobriedade e elegância,  conhecimento de alma e  juízo de valor implícito,  conhecimento dos comportamentos humanos e malhas da sua dissidência,  e a  assumpção do pensamento revolto  que sobrevive no domínio do poético. Quando pretendo ler em voz alta umas páginas que ilustrem como a narrativa feita com palavras continua a ser única na reprodução dos conflitos humanos, seus abismos e seus sonhos mais íntimos,  escolho aquela passagem em que um dos  personagens, Konrád,  pretende matar o seu amigo  numa madrugada, no meio da floresta. Como o poupa,  por que o poupa, e tudo isso é contado, não pela voz do  sujeito da tentação, mas pelo outro,  Henrik,  aquele que no último momento foi poupado. Esse, o velho general, passados quarenta anos, à luz das velas, pode reproduzir o bombear do coração do amigo como naquela hora trágica de revelação, durante a cena da caça. Inesquecível.  Este livro e o seu autor têm histórias europeias bizarras que não cabe contar aqui. Mas servem um e outro para os leitores se reconciliarem com a ficção,  quando por acaso se tenham desentendido com ela, enquanto  proposta de Arte.  
______________* Publicado no semanário SOL, agosto de 2007
                                          Tire uma cópia
                                        

 
 
Sem comentários :
Enviar um comentário