segunda-feira, 1 de março de 1993

Original * Motas, sentido de liberdade

Cavalo de fogo

Lídia Jorge

Se o automóvel é o primogénito do coche antigo, assente em várias rodas e puxado por muitos cavalos, não há dúvida de que a mota é o cavalo ele mesmo.

Na verdade muitos dirão que lhe falta a crina, o relincho e o suor de animal de carne e sangue. Também a vontade própria que lhe permitia os coices, e a dependência de um alimento compacto que fazia da besta um vizinho do seu dono. Mas, em contrapartida, as duas rodas transformaram-no em alguma coisa que consegue outras distâncias, e permitiram realizar a infatigabilidade que no bicho era impensável supor. Em tudo o mais se assemelham e cumprem a mesma função.

Em cima da mota a pessoa é independente, e o selim, feito para um só, permite quando muito o aconchego de um outro que faz companhia e se leva ao longe. Abraçado pelas pernas ao animal de aço, também o corpo se expõe ao vento e à tracção do ar, e realiza assim o que o risco sempre significou para o homem quando jovem. A exigência da força física, da agilidade, da versatilidade da cintura, a coordenação dos movimentos, tornam-no um objecto próprio para heróis. A exiguidade da dimensão permite que ultrapasse rápido, se esgueire por entre pequenas nesgas de trânsito e deixe para trás aqueles que obrigatoriamente se imobilizam junto ao chão, castigados pela comodidade das quatro rodas. Há na desenvoltura dos motociclistas um atrevimento que faz sonhar. Assim, sobre a mota o homem coloca o ardor de ser audaz e encontra a possibilidade de ser temerário, já que as sociedades modernas lhe diminuíram as oportunidades de ser valente com o seu corpo. Por isso mesmo os franceses lhe chamam siège de feu, apenas porque não se lembraram de lhe chamar de cavalinho de oiro. O jovem afaga o seu transporte, olha com desdém para o portal da casa, imagina a via livre onde poderá acocorar-se em novelo como se disparado, e as curvas em que poderá raspar as bermas como se caísse. Por vezes, em sítio próprio, a mota poderá saltar como se voasse. Todos os que lhe impedem essa trajectória de estrondo e risco são malquistos. Mas a chamada para esse denodo é alguma coisa mais forte do que o querer individual de cada um. Aliás, agora pelas estradas, os moços, em motas, andam grupos como nómadas. Fazem excursões e ocupam os espaços como bandos. São pequenos exércitos naturais à procura da sua cavalaria e da sua contenda. Eu gosto de os ver passar. Eles cumprem um destino da vida que os leva a fugir, com ruído e ferocidade, dos panos quentes, das mesas e das camas. A fugir do leite e das horas certas de dormir. Sem saberem, eles simulam a migração que seus antepassados fizeram na sua idade, ao cruzar os continentes sem saber onde iriam parar. Foi assim que a Terra se povoou. Nas suas cabeças passa um destino que se desconhece. Eles mesmos julgam que se rebelam e, contudo, obedecem a uma força da Natureza que os vai chamando. Por isso, quando passam produzindo o som inconfundível, entre ameaçador e gritante, tiro-lhes o meu chapéu, abrando o carro, deixo-os passar.

Mas nem todos abrandam diante dos cavalinhos de oiro. Há mesmo os que aceleram, ou apertam, ou perseguem, ou driblam ou que são simplesmente indiferentes. Traçam tangentes como se os não vissem. Depois, há os camiões grandes, os -que pesam várias toneladas e cujo motorista vai tão alto, sentado no seu trono, que mal dá pelas motas a passar. Se são dois camiões altos e pesam muito, e levam as grandes rodas postas, e grandes cargas montadas, a estrada fica cheia de peso. Os rapazes das motas têm tanta pressa. Como vão esperar pelas manobras lentas dos grandes camiões das estradas, e pelas tangentes dos carros, protegidos por chapas e por estofos?

A proteger o corpo dos ocupantes das motas, vai só um pedaço de fazenda ou quanto muito, um blusão de cabedal. E a sua pressa é tão grande, e a noção de que os seus corpos são inatingíveis é tão altiva. E a confiança no piso, na máquina e na ausência de obstáculo é tão forte. O coração motorizado da máquina, batendo sob o coração do jovem, é um todo invencível que passa sem qualquer peso de montada, Sem qualquer necessidade de vénia ou de descanso.

Por isso abrando a marcha do meu carro e espero que passem todos. Para não lhes inibir a rota, nem lhes impedir o pensamento fixo. Não me quero juntar aos obstáculos que as mães foram pondo, até que as vontades dos seus filhos fossem mais fortes, Eu respeito essas pequenas montadas conduzidas por pessoas que desejam coisas, com uma vontade muito maior do que elas mesmas têm. Eu já fiz tudo para contrariar essa vontade. Agora, porém, eu compreendo o trajecto que medeia entre a proibição e a mota.

Ao fundo da escada, o meu filho tem uma.
____________________

* Publicado na Revista "Tempo Livre", março 1993
Tire uma cópia