O Dia dos Prodígios,
theatrum mundi
theatrum mundi
Jorge Listopad *
O Dia dos Prodígios
Publicações Europa-América
Lisboa, 1980
Capa da 1.ª edição |
Dissemos microcosmo de uma aldeia algarvia desconhecida do fluxo artístico. A sua forte, credível e sempre transcendente literalidade tem apoio em dois vectores: o primeiro, uma íntima experiência da factologia, do infra-real ao sobre-real. Cada palavra encobre uma vivência memorável e imemorial, diria, cada palavra contém a própria história. Com a palavra, o gesto, isto é, outra palavra. Este prodígio do conhecimento quase autista do gesto humano, pré-científico, protográfico, oferece, mediante essa plural matéria-prima, o material. Caso singular, Lídia Jorge opera dentro de uma literatura que não cultiva sistematicamente nem as experiências do concreto nem o conhecimento material da realidade; pelo contrário, a literatura é considerada entre nós ou um ornamento ou cosa mental, abstracta. Aqui reside a linha de força original deste primeiro romance-surpresa de Lídia Jorge.
O segundo vector-factor consiste na introdução do lúdico dentro dessa sondagem literária. Ao leitor, de Segunda, ou terceira leitura, ocorre que a A., com a matéria aqui caracterizada, opera depois através do jogo, do cálculo de probabilidades pessoal: como se as propostas e as apostas da verdade criassem uma ténue sucessão de episódios figurativos, uma vibração «Lust zum fabulieren», de élan épico; uma imaginação das probabilidades em marcha que se organiza organizando. Não será por acaso que a serpente, condenada pela ciência da natureza a arrastar-se horizontalmente, em O Dia dos Prodígios voa em todas as direcções. Este acidente do natural não se assemelha à serpente voadora de Jorge Luís Borges, curiosidade do insólito e do fantástico. O acidente do natural de Lídia Jorge é apenas um outro natural, em prisma imaginário, como qualquer outra visão do mundo.
Extremamente vivo, o livro, articulando corpo real e imaginário, representativo da senso-motricidade verbal, individualizado e subjectivo, identifica-nos ao longo das páginas, faz-nos naturalizar, identificar com o objecto – subjectiva e objectivamente.
Não proponho que se leia este livro de Lídia Jorge como um simples exemplo da arte de escrever, mas que se releia e decifre uma das mais ricas partituras da literatura portuguesa contemporânea, em que a ilusão da totalidade do microcosmo se conjuga com a ilusão do imediato quase cinematográfica (livro praticamente escrito no presente do indicativo; quantas frases curtas, constatativas, sem verbo, lembrando planos cinematográficos!), tudo convergindo em ilusão simbólica, esta já macrocósmica.
Ou como da aldeia da serra algarvia chegamos ao theatrum mundi.
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* in Colóquio Letras, nº 67, maio de 1982
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