domingo, 8 de maio de 2011

Depoimento * António Paulouro

Cesto de cerejas

Lídia Jorge *

Passados estes anos, a biografia de António Paulouro está escrita, a lista de gestos nobres que fizeram a sua vida pública começa a estar feita, o elogio da sua dedicação e da sua pertinácia nunca sendo demais, tem sido ensaiado por muitos que o conheceram de perto. E aqueles que trabalharam a seu lado poderão falar de uma intuição que permitiu que um esforço localizado numa cidade da Beira Interior levasse a mensagem de um país aos portugueses espalhados pelo mundo. Ou por outras palavras, a distância no tempo já permitiu desocultar o significado da sua resistência, sublinhar o que foi afirmar uma região através de um órgão de imprensa que se tornou não só notável, como se transformou num símbolo, e por isso, António Paulouro e o Jornal do Fundão são duas identidades que justificam manifestações à altura, históricas e solenes como devem ser. A seu lado, a minha memória não pode deixar de ser marginal, e diria quase íntima, se essa palavra significasse apenas familiar, e familiar não tivesse a ver com família.

Homenageio António Paulouro através do que me contou sobre uns cestos de cerejas. Certa vez, António Paulouro veio ao meu encontro, trazia consigo a familiaridade próxima daqueles que não levantam barreiras, e começou a descrever uns cestos de cerejas que havia preparado para oferecer aos seus amigos. Não falou do Jornal do Fundão a propósito do qual nos encontrávamos, nem da filha, Maria José Paulouro, a figura que muitos anos antes nos relacionara, nem da política escaldante da altura. Não, António Paulouro falou da qualidade das cerejas, da chuva que havia deteriorado grande parte da colheita, da diferença entre as cores, as escuras e as apenas vermelhas, para dizer que dentro de cada cesto havia colocado um livro. E enumerou os títulos dos livros que tinha enviado aos amigos de mistura com as cerejas. Os nomes dos amigos, os títulos, as cerejas. Os cestos e as suas vergas, a razão miúda dos títulos oferecidos. Essa conversa tinha lugar nos corredores do Palácio de São Bento, os deputados passavam afadigados para cá e para lá, jornalistas corriam atrás deles, e aquele deputado, magro, risonho, já entrado, não era dali. António Pauloro pertencia a um campo sem limites, semeado de letras e árvores carregadas de cerejas.
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* in Jornal do Fundão, 8 de maio de 2011
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