sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ensaio de leitura * Elfriede Engelmayer

(Apresentação
de "A Noite das Mulheres Cantoras"
Coimbra, 8 de abril de 2011
na Livraria Nova Almedina)

Declinar a perfeição:
A noite das mulheres cantoras
de Lídia Jorge

Elfriede Engelmayer *

Entramos sempre num texto literário pela mão de um autor. E essa mão - que nos segura e lança para o desconhecido - às vezes desdobra-se.

Há um pequeno conto de Lídia Jorge, não datado e reproduzido numa brochura que está a ser distribuída no âmbito da homenagem à autora a propósito dos 30 anos decorridos sobre a publicação de O Dia dos Prodígios, intitulado “Harmonia”, que começa com as seguintes palavras: “Em Boliqueime o mundo era perfeito”. Essa perfeição, nos olhos da criança (a narradora), assenta na ordem hierárquica em que reina o medo, em que a bisavó, cega, é supostamente o elo mais fraco de uma família tradicional- por ser a mais velha e por ser mulher. Mas quando a criança faz ruir essa perfeição num acto infantil sem maldade, e toda a fúria da ordem estabelecida ameaça desabar sobre ela, é esse elo mais fraco que se revela ser o mais poderoso: ao resgatá-la, ao consolá-a, ao estabelecer uma harmonia e um equilíbrio novos, feitos de um afecto salvador, a bisavó opera o milagre da redenção.

Se narrar “é sempre uma forma de continuar a infância do mundo”, como a narradora de A noite das mulheres cantoras afirma, narrar também pode ser uma forma de tornar visível o que nos separa dessa perfeição primordial. Na geografia humana de Lídia Jorge, desde O vento assobiando nas gruas, de 2002, e Combateremos a sombra, de 2007, a questão da inevitabilidade da culpa surge como condição humana por definiçaõ, e nenhuma redenção pode já vir de fora: não há mais nenhuma mão protectora como a da bisavó que guie as personagens para longe do olho do furacão.

O relato da “Noite perfeita”, supostamente um conjunto de 34 páginas que chegaram às mãos da narradora, é o ponto de partida para uma história de revisitação do passado em que ela, narradora, amplia o conto inicial de Solange de Matos, desenhando uma estrutura circular, cujo fim não só remete para o início da narração, mas igualmente para a página introdutória.

Porque “noites perfeitas” há duas: a do relato de Solange em que, no fim de um espectáculo protagonizado por Gisela Batista, a antiga maestrina do grupo de cantoras dos anos 80, surge João de Lucena, coreógrafo da banda e antigo amante de Solange, e há também aquela “noite perfeita” dos anos passados, o sonho de cinco mulheres jovens que se preparavam para arrasar a audiência com as suas canções. E, no entanto, nenhuma dessas noites é perfeita.

Perfeita é a ilusão, e perfeitos são a mentira e o encobrimento de um crime. Quando a african lady, a grande voz da banda, se esvaía em sangue na garagem dos ensaios, três dias após ter dado à luz, e de ter sido retirada do lugar enrolada num carpete para nunca mais se saber dela, o terrorismo psicológico da maestrina continua a manejar a sua tenaz sobre os restantes elementos- o disco vai ser gravado, o espectáculo adiado, Madalena Micaia substituída, mas- mais do que isso- a história vai ser reescrita para diluir a culpa até que ela já não pertença a ninguém.

Quando, no presente da narração, Gisela evoca o passado no decurso do espectáculo do reencontro, ela inventa um destino diferente para a sua vítima, que terá regressado a África, para emocionar o público crédulo do “império minuto”.

Não é por acaso que a narradora reitera inúmeras vezes que deveria voltar a pensar na Noite Perfeita em vez de opor a sua memória à definição da verdade por Gisela. Este romance, além de traçar um retrato complexo dos anos oitenta e dos meandros da culpa em que inevitavelmente se enredam as personagens obcecadas pelo êxito por deixarem demasiadas vítimas atrás, este romance, dizia, trata também do poder da palavra: das palavras que guiam para o bem ou para o mal; que interpretam o mundo; que cunham aquilo que pode ser tomado por verdade.

A jovem Solange de Matos, com os seus dezanove anos, passa da tutela da palavra do pai, que era ainda o narrador da sua vida, para a esfera da definição de Gisela. Mas crescer significa também apoderar-se da própria palavra. E é só no fim da história, no presente da narrativa, que ela encontra o “Não” libertador. Encontra-o para proteger o antigo amado, João de Lucena, das investidas de Gisela, que planeia vampirizar a doença mortal dele num espectáculo, revogando assim o que ela tinha suposto ser uma lei: que viver significava atraiçoar, e sobreviver trair.

Não carregavam todas as cinco mulheres consigo um passado nas várias partes de África em que tinham nascido directamente para uma existência de culpa e de traição? Como poderia um indivíduo só, como o pai de Solange, proferir um “Não”, quando se sentia legitimado pelas circunstâncias históricas do colonialismo e fugia para salvar a sua pele? Deveria ele ter trazido consigo para o continente o aluno dilecto negro que o avisara da expulso iminente, em vez de ameaçar cortar-lhe as mãos com que se agarrava ao taipal do camião?

E deveria a jovem Solange ter aceitado o amor de Murilo, o “carteiro do mundo”, se não o amava, e submeter-se à sua tutela pelo simples facto de ele ser uma pessoa idealista e íntegra?

Na abertura à Noite das mulheres cantoras, a narradora refere uma epígrafe às 34 páginas, colhida de um livro de Nina Berbérova e que ela decidiu não utilizar: “E aqui terminam as minhas memórias. Mas o meu monólogo, que ninguém ouve, continua.” O monólogo de Solange, nós ouvimo-lo, como todos os monólogos podem ser ouvidos, ou lidos. É uma confissão sem instância para absolver, a não ser que a confessanda se declare, se não inocente, pelo menos em paz consigo própria após esse trabalho de luto: pelas vítimas, mas também por um amor ainda vivo.
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* Elfriede Engelmayer é doutorada pela Universidade de  Viena
e Leitora de Alemão na  Universidade de Coimbra; 
colaboradora das revistas Tranvía (Berlim)e Matices (Colónia)
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