sábado, 11 de abril de 2009

Depoimento * Esse sentimento de coisa única

O que mais desejava ver

Delacroix,  'A Paz descendo sobre o Mundo'
Lídia Jorge *

Gostava de poder ver a Terra a partir do espaço. Dizem que parece redonda, pequena, azul, e tão sozinha no meio de nada que apetece chamar alguém para lhe pôr a mão por baixo. Dizem que avistada a partir de longe a sua imagem cria sentimentos contraditórios inexplicáveis, como o medo de que não se sustente por si mesma, ou de que o seu rumo esteja traçado sem que possamos fazer nada por ela, e a ansiedade por regressar ao solo para ajudar a mantê-la, pelo menos, tal como está. Isso eu gostava de poder ver, com os meus próprios olhos, para guardar na memória e escrever a propósito. Dizem que avistada a partir de escassos quilómetros, já não se sabe onde começam e acabam os países, que tudo são apenas montanhas, rios, planícies, mares, ocultados por nuvens que se deslocam em forma de farrapos e massas circulares. Isto é, ainda não se saiu da atmosfera, e já a Terra deixa de ser política, passa a ser apenas o que é - um planeta, uma realidade geográfica. Dizem que é esse sentimento de coisa única que nos faz sentir que somos uma só humanidade, a última face da humanidade, tão transitória como foi a que nos precedeu e como será aquela que estará para vir, dentro de dez, quinze anos. Dizem que, a partir de lá, a pessoa sente que todas as armas devem ser depostas. Dizem que, uma vez regressados, aqueles que a vêem do espaço não entendem mais por que nos espadeiramos uns aos outros. Eu quereria experimentar tudo isso, olhando a Terra de longe, como se estivesse a passear num jardim feito de coisa nenhuma, e de repente, sentisse que ali estava a minha morada. Mas por certo que essas viagens não acontecerão tão cedo, que a princípio estarão destinados apenas a milionários, além de que eu mesma nunca terei o treino físico suficiente para aguentar semelhante embate. Sei tudo isso. Ainda assim, falam-me de uma visão no futuro, e é isso mesmo, o rosto dela, que eu quereria poder observar.
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* Publicado na revista Única | Expresso, 11 de abril de 2009

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