domingo, 1 de março de 2009

Depoimento * O assunto levar-nos-ia longe.

Para que servem os intelectuais?

Respostas a Questionário de Filipa Melo *

Qual é a sua definição de intelectual? O que legitima ou (não) a sua credibilidade moral crítica?

Lídia Jorge - O intelectual , essa figura que transportava consigo um pedaço da Razão Universal da qual ele era o porta-voz privilegiado, como conceito, praticamente desapareceu. Se alguém, nas sociedades modernas, ainda se lhe parece será a nível dos comentadores e cronistas da área política . Aliás, são as únicas pessoas tratadas ainda por “intelectuais” e mesmo assim, três ou quatro ao todo. De resto, as pessoas são tratadas pela sua função, professores, jornalistas, artistas, músicos, economistas, ao lado dos camionistas, empregadas do shopping e corretores de bolsa. O acesso à opinião que se proporciona a todos, partiu do acento democrático das sociedades e os novos meios de comunicação conduziram-na a um nivelamento completo. Uma tirada bem aplicada de um boieiro pode valer mais, para fazer passar uma razão, do que a de um catedrático. Na cultura do conhecimento existe um saber próprio do desconhecimento, e do desconhecido, que ocupa um espaço considerável. O assunto levar-nos-ia longe. O papel que antes era ocupado pelos intelectuais, entre os quais os escritores ocupavam um lugar particular, passou para uma outra realidade, a chamada figura pública, uma criação dos meios audio-visuais. Se alguém se toma por intelectual, essa figura prestigiada pela superioridade moral de antigamente, pode experimentar sentar-se no meio de uma assembleia de televisão e rapidamente concluirá que será muito menos escutado do que o cantor ou o actor. O filósofo, por exemplo, não tem lugar mediático, que é o lugar onde se existe no mundo contemporâneo. Não li o livro de Paul Jonhson mas creio que pelo que é narrado ele fala de um mundo que acabou. O intelectual, esse clérigo sem mancha, naturalmente que deveria ter algumas nódoas escondidas. Retroactivamente, terá imensas, será só procurar com minúcia e perseverança.

Qual a margem de intervenção pública de um intelectual numa área que não é a sua, de especialização?

LJ - Acho que tem pouca margem. Até há pouco tempo pensava-se que ao esplendor de uma obra correspondia necessariamente o esplendor de uma razão iluminada, mas hoje admira-se a obra sem necessariamente se dar crédito à opinião do seu autor. Isso, na minha ideia, constitui um progresso tão grande como separar a personagem do seu intérprete. Significa que as pessoas estão mais avisadas sobre a diferença de planos. Por exemplo, toda a gente hoje sabe que a opinião ideológica era a moldura que até há poucas décadas ditava a “inclinação” que conduzia à tomada de partido por este ou outro assunto, mesmo quando pouco ou nada se percebia sobre ele, mas essa situação não se compagina mais com o mundo de informação aberta. Muitas vezes aquilo que se chama a cobardia dos ditos intelectuais de agora não passa de uma hesitação perante realidades em conflito quando se desconhece uma parte da situação. Do ponto de vista doméstico, creio que terá sido Vicente Jorge Silva quem ainda chamou aos apoiantes intelectuais das causas políticas, “idiotas úteis”. Estou convencida que hoje em dia tal designação está desadequada – Neste momento, escritores, artistas, filósofos, professores, passaram a ser “idiotas inúteis”. Numa cultura em que as palavras em frases longas não passam, os futebolistas, os manequins e os DJs são o ideal para promover opinião favorável às causas mais diversas. Já um cantor pode ser um agente perigoso, já corre o risco de poder usar um verso.

Até que ponto a obra de um autor é iluminada/contrariada pelo conhecimento da sua biografia? É possível separar obra de biografia?

LJ - Acho que é um exercício estupendo tentar separar os dois planos. Kundera, que é contrário às autobiografias, disse que o escritor faz da sua vida os tijolos da sua obra, não escreve com eles a sua vida. Mesmo assim, ultimamente, no seu país, têm surgido bastantes julgadores do tipo do Paul Johnson. Por mim, acho que há obras que são espelhos autobiográficos, e outras em que do seu autor apenas sobressai o eco do seu temperamento, o ser profundo que passa para a obra. Mas a obra, à partida, tende a ser uma transfiguração, essa é a sua essência. Há obras geniais repassadas de humanidade, saídas da mão de criadores a quem não se pode confiar durante uma hora o nosso animal de estimação, e há artistas boas pessoas que não conseguem fazer uma obra que vá além do sofrível. Entre uma e outra espécie, existe uma variedade de combinações infinitas. A biografia funciona como uma vida paralela àquela vida que realmente interessa, a vida da obra em si, aquela que cria uma outra realidade com os seus horizontes próprios. É por isso que eu não advogo que se misture a obra de S.V Naipul com as relações que manteve com as suas mulheres. Essa mistura é boa para as histórias de cordel. Acho detestável esse tipo de insinuações.

Considera que, em Portugal, a expressão pública dos intelectuais se reveste de um poder efectivo de intervenção social e política? Que impacto teve na sua vida pública a sua tomada de posição recente na discussão do aborto?

LJ - Como disse atrás, esse papel tem diminuído, e os “intelectuais”, entretanto, praticamente desapareceram como entidades com poder efectivo. Aliás, cada vez mais se fala em élites, o que é um conceito muito diferente. Mas em determinados momentos, pelo menos até agora, as pessoas relacionadas com o conhecimento e as artes clássicas ainda têm sido chamadas a prestar contas da sua consciência em público. É preciso ser-se generoso, ou pelo menos desprendido, para a pessoa se prestar a isso. O debate não se faz mais por grandiloquências morais como outrora, faz-se por argumentos sustentados, e exige um exercício de confronto que muita gente evita, num país onde o debate facilmente cai para lugares pouco cívicos.

No debate sobre o aborto, defendi a posição que continuo a reconhecer como conforme os princípios de uma sociedade moderna mais civilizada. O acaso conduziu-me a interpretar algumas rábulas curiosas, mas não me importei muito com isso, nem acho que me tenha afectado. Fi-lo como cidadã, com os argumentos que tinha para oferecer, não foi como “intelectual”. Se na altura uma organização qualquer me tivesse pedido para eu ir colar cartazes, ou falar de porta em porta , eu teria ido. Em casos assim, não me parece que funcione a ideia de notoriedade, mas de utilidade. É uma maneira de escrever o tempo de outra forma.

Alguma vez o desajuste entre a vida privada e a vida pública (ideias ou programas defendidos) de um autor/intelectual a fez rejeitá-lo ou reconsiderar o seu contributo intelectual?

LJ - Nunca vivi um conflito de discrepância entre vida privada e vida pública, o que acontece à maior parte das pessoas que vivem ou passam a viver em democracia bastante cedo. Em regimes totalitários, como sucedeu em Portugal, aí sim, os confrontos devem ser terríveis. O ofício de calar, por exemplo, de esconder, de ser ambíguo, deve ser triste, deve criar um conflito permanente que nós, em liberdade, não conhecemos. É por isso que eu não entendo muito bem tanta sanha contra Günter Grass, agora contra Milán Kundera, ou mais perto de nós, a crítica contra as hesitações de figuras como Amos Oz e David Grossman, em relação à causa israelo-árabe. Se olharmos para as realidades concretas e históricas de certos países, percebemos como os seus criadores têm de estar permanentemente a fazer escolhas entre a vida e a morte. Não é propriamente o nosso caso. Podemos dar-nos ao luxo de misturar, ironizar, não participar. Gérard de Cortanze costuma dizer que não é irónico porque nasceu pobre. Confissões corajosas que só faz quem quer. Mas escritores como estes não fazem parte daqueles que serão o pasto dos Paul Johnson. Voltando ao desajuste, no meu caso, a discrepância de que me dou conta resume-se a uma espécie de intervenção por defeito. Sempre tenho um impulso para me envolver em muitas causas, chamemos-lhe assim, mas nunca consegui compatibilizar durante muito tempo a escrita e a actividade em círculos de intervenção cívica.

Se lhe aprouver comentar: “Não existe meio de separar a estética e a filosofia da existência. Toda a obra de arte deve ter certo desígnio, um poder, responder a situações reais. As obras de arte constituem soluções para um certo número de dificuldades” – Michel Butor.

LJ - Butor tem razão – então não haveria de ter? – quanto ao princípio de que uma obra de arte deve servir para alguma coisa. Como toda a gente, Butor sabe que a dimensão da inutilidade defendida por Oscar Wilde é a sua suprema utilidade. E esse é um desígnio soberano. Agora existe toda uma escala de entrelace entre estética e existência que vai desde a tentativa do divórcio entre ambas até ao puro imaginário social, com intenção de serviço directo em relação a uma determinada sociedade, num determinado momento. Alguém é capaz de negar essa dimensão a uma obra como a de César Aira? Em “As Noites de Flores”, por exemplo? É um livrinho que nasce para demonstrar, pura e simplesmente. E no entanto, a sua dimensão estética é inegável. Neste caso, tal como em relação aos escritores e suas biografias malignas ou cor-de-rosa, interessa criar uma árvore classificatória cujos ramos não sejam escassos.
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* Respostas integradas no artigo “Públicas Virtudes & Vícios Privados",
Revista Ler, março de 2009
Designação inicial do questionário:
Para que servem os intelectuais? | Na peugada de Paul Jonhson, autor de "Intelectuais"
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