segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Conto * As quatro caçarolas com os mesmos animais guisados

Coelho à caçadora

Lídia Jorge *

Um belo conto não é aquele que termina bem, nem aquele que termina mal, nem tão pouco aquele outro cuja sedução resulta da arte do encadeamento ou da perícia da própria escrita. Um belo conto é aquele que vem da vida, fica suspenso dela e a ela regressa de mistura com o seu enigma. Um belo conto é a fatia dum acto que nos resiste. Possivelmente este não será um belo conto. E no entanto, tal como mo foi oferecido, tudo teria para isso.

A prova é que o mês a que me refiro não corria demasiado quente, nem a luz se oferecia demasiado crua. Pelo contrário, a tarde de Junho durante a qual a cena se passa prometia fazer transitar o dia para a noite sem declínio nem crepúsculo, e nesse trâmite, todos os sentidos ficariam à flor da pele. Também os espaços vivem duma espécie de promessa de perenidade que certos lugares de privilégio oferecem a quem se lhes entrega, e este era um pátio interior para onde se entrava transpondo um portal antigo sobre o qual se poderia ler, cravado em madeira de carvalho, Taverna das Donas. Mas os carros de alta cilindrada, que continuamente chegavam e partiam, esses ficavam lá fora, e se pensarmos na potência dos seus motores, poderemos dizer, por respeito à unidade de arranque e tracção, que na sombra exterior daquelas paredes brancas, à hora das refeições, vinha repousar a força unida de uns bons milhares de cavalos. E no que respeita a gente?

Nesse domínio, o das personagens, as coisas são como são. À primeira vista, dir-se-ia um fim de dia banal. O restaurante fica ao abrigo do principal cruzamento das estradas, mas uns ingleses com braços tatuados de peixes e dragões bebiam latas de cerveja rente à parreira. Uns italianos de narizes em forma de faca discutiam ruidosamente, no canto oposto do pátio. Naquele momento, os portugueses presentes ainda permaneciam perto da entrada, cumprimentando-se com abraços e socos, e seriam não mais de doze, mas a mesa em forma de T que os espera, tem capacidade para vinte e muitas pessoas, pelo que se deduz que ainda não tenham chegado todos. São um grupo de homens, aficionados em pitéus de coelho e rola, apesar de não se tratar de caçadores. Os seus pais ou avós talvez o tenham sido, por certo os seus bisavós. Seus dignos herdeiros. E no entanto, pelo aspecto – trinta, quarenta anos bem tratados, bem vestidos – percebe-se que do hábito da caçada apenas lhes tenha ficado o gosto pelo último gesto, a acção de comê-la. É para essa actividade que se preparam aqueles homens ali reunidos. Três mulheres portuguesas, bem dispostas, correndo dentro e fora, entregam-se ao afã dessa restauração de fim de dia. Tomara que os estrangeiros partam para que as três sócias se possam concentrar exclusivamente sobre o serviço da grande mesa. Tomara que se vão. Sobre as toalhas brilham azeitonas galegas em pires de barro, pequenos queijos curados balizam os talheres e os pratos. Dentro e fora, ainda faltam alguns copos e alguns guardanapos. As três mulheres portuguesas gostariam que nada faltasse naquela refeição de caça. Os clientes conhecem esse desvelo e reclamam em voz alta. Um deles levanta-se, no topo da mesa.

“E para beber, não há nada?”

É então que aparece, no vão da porta, uma quarta mulher, uma rapariga acabada de sair do compartimento que serve de bar, e pára para rir, antes de se encaminhar para o meio do pátio. Avança. Traz os cabelos loiros espalhados pelos ombros, as pernas estão nuas, a saia de cotim tem a altura de um palmo, a blusa de alças está coberta de brilhos, as mãos e os tornozelos estão enfeitados de pulseiras, a cintura está marcada por um cinto apertado como as actrizes dos anos cinquenta. Os olhos são azuis pálidos, as pequenas pupilas pretas quase desaparecem no meio desse azul de lago. Entalada na orelha direita está uma esferográfica vermelha. Sem parar de rir, a rapariga encaminha-se na direcção da mesa, começando a falar muito alto -“O que é isso? Tens sede? Então diz lá o que queres beber”.

E com o bloco na mão e a esferográfica entre os dedos, põe-se a enumerar a sua oferta - “Tu tens vinho, tens cerveja branca, tens preta, tens Sumol, tens Frutini, tens vinho branco da casa e tens de marca, tens tinto... O que é que tu queres beber?” Todos riem.

A rapariga usa o singular como se fosse um plural majestático, ao mesmo tempo anónimo e colectivo, percebe-se que a rapariga não conhece a confusa gramática dos tratamentos portugueses, e por isso não avalia até que ponto a sua linguagem é pitoresca, a rapariga continua a perguntar – “Queres grande ou pequeno? Natural ou gelado?” E embora um e outro cliente deseje explicar as preferências muito perto dos seus cabelos, se possível mesmo rente ao seu ouvido, ela mantém-se à distância, a rir – “E tu só queres água? Oh pá! Tens medo de ficar bêbado? E tu, e tu?” Todos compreendem, a rapariga chegou há um ano da Ucrânia, ainda não pode falar bem o português. No entanto já tomou nota, já deu de costas, já entrou no interior do bar, e já voltou trazendo consigo as primeiras bebidas, as segundas e as terceiras, colocando as garrafas frescas contra a blusa onde se pega a humidade dos vidros, pequenas manchas escuras no tecido de brilhos. Nessa entrega, porém, a rapariga é obrigada a aproximar-se de cada cliente, obrigada a estender o braço despido, coberto de penugem loira. Nessa aproximação aos clientes, ela está tensa.

“Encosta a tua cabeça para lá. Não vês o meu braço a querer passar por cima de ti?”

Mas é difícil fazer-se escutar. A excitação instalou-se no pátio, os clientes são homens na flor da idade, falam alto e pedem mais líquidos, mais pratos, mais queijos, mais, mais, e os nomes das três sócias há muito desapareceram da cena para só se escutar o seu nome – “ Olga, ó Olga! Mais pão, mais vinho, mais gelo! Aqui falta um copo, Olga! ” E um deles grita, na ponta da mesa – “Preciso de ir a Kiev! Mulheres destas já não existem na Europa do lado de cá ...”

Agora a ucraniana está à distância resguardada de três passadas, está a vigiar as bebidas da mesa, e continua a rir. Entretanto virou o cabelo todo para um lado, virou-o só com uma das mãos, e uma pulseira de pérolas pintadas ficou exposta em frente da testa, a coroar-lhe a face. Também cruzou as pernas à altura dos joelhos como as crianças fazem, e também encostou o rosto sobre um dos ombros, tal como elas, e ficou à espera. Não esperou muito. Um dos homens mais barulhentos do grupo grita na sua direcção – “Olga, você tem de repetir aquilo da semana passada. Você tem de explicar outra vez como se faz aquele cozinhado. Explique lá para a gente...”

“Ai minha mãe! Outra vez?” - Reage a rapariga, zangada. “Olha, vai pedir à cozinheira que está lá dentro a cozinhar, ela é que sabe...”

Mas uma das três sócias, dentro e fora, quer ordem na casa- “Explica tu. A cozinheira não tem vagar de vir cá fora explicar...”

“Ai minha mãe!” – diz Olga de novo, afastando-se da mesa e elevando os olhos para além dos homens, sem os enxergar. Renitente - “Porque queres tu que eu explique uma coisa que é para comer? Para quê?”

“Explica!”

A rapariga uniu as mãos como se fosse recitar.

“Então é assim...”

E entre desolada e divertida, começou a explicar o cozido, os olhos azuis para além do telhado. Começou por dizer, entre avanços e recuos, que para aquela comida não era preciso caçar o coelho, que já vinha do talho todo esfolado, sendo só preciso parti-lo em pedacinhos para dentro dum alguidar... Alguidar, diria bem? Diria. Tudo o que ela estava a dizer dizia-o muito bem. Gritaram vários. Aí a rapariga ganhou um novo impulso. Contou – “Lá dentro, muitos coelhos, todos esfolados, partidos aos bocados...” Meio a rir, meio concentrada - “Depois, tu pegas nos sete temperos... Pões a cebola, os alhos, o vinho, o sal, a salsa, a pimenta, o cravinho e o louro. Depois tu deixas o coelho ficar a dormir com os temperos durante muito tempo. Depois tu escorres, tu fritas os pedaços do coelho molhados em farinha, tu pões tomate, e por cima ainda o molho que ficou do dormido... Aí tu pões tudo a cozer durante duas horas, tu pões as batatas lá dentro, tu esperas, tu serves com pão frito aos quadrados, tu emborcas tudo para dentro das caçarolas de barro, a cozinheira vai-se lavar, e a gente traz para tu comeres e beberes com o vinho...”

Olga está feliz consigo mesma, foi capaz, terminou.

Mas os homens pedem mais - “Outra vez, outra vez...”

“Para quê, outra vez?”

Outra vez, porque está provado que ela conhece os nomes de todos os condimentos, lembra-se de todos os detalhes, mas ainda hesita, ainda revira os olhos para se lembrar, e dessa hesitação e embaraço, destila-se uma bebida que não tem nome mas que embriaga os clientes, que querem mais narrativas daquelas, mais e mais. Por eles, os homens sentados à mesa, provenientes de escritórios sombrios e horificados, deveres imateriais que se processam longe das ervas e das árvores entre as quais caçaram os seus antigos pais, ficariam ali a escutar a ucraniana a procurar as palavras certas, até ao fim dos dias. Aliás, ela vira-se, o cabelo loiro ainda tombado todo para um lado, todo sobre um ombro, como se tivesse acabado de o lavar e o penteasse com os dedos, ela vira-se para anunciar – “Olha, já lá vem ele! Já podes comer o teu coelho à caçador...” E ela mesma, afastando os homens com o olhar azul e o braço, ajuda a centrar as caçarolas, elogia o cheiro que provém de dentro das quatro vasilhas de barro, onde navegam em molho e batatas, doze coelhos bravos refogados aos bocados. Um dos clientes não resiste ao cheiro do ensopado.

“Diga lá, Olga. Há destes cozinhados em Kiev? Não há, pois não?”

A rapariga revira os olhos claros, como se ofendida - “Ai minha mãe! O que julgas tu que não há em Kiev? Em Kiev há tudo como cá. Até há mais, porque há neve ...”

Mas nesse instante preciso, Olga suspende a conversa. Aproxima-se do topo da mesa e aí fica, com as mãos na cintura, o nariz no ar, até que diz muito alto, cheia de espanto.

“Olhem quem ali está... Aquele maluco, em cima do telhado!”

“Quem? Quem?”

Todas as cabeças se viram.

“Aquele maluco.”

É um facto, sobre o telhado da Taverna das Donas , encontra-se um homem empoleirado a olhar para o interior do pátio. Não, não está apenas a espreitar por um canto do telhado do restaurante, o homem está mesmo instalado ao centro do vão das telhas cujo beiral se eleva diante da mesa em T, está ali a uns escassos metros de distância da mesa, comodamente sentado, e ninguém o viu subir nem caminhar sobre a cobertura, nem tomar aquele lugar. Ali está, numa roupa azul, a cara vermelha, magra, ossuda, imóvel, a olhar. Olga diante da mesa também imóvel. Abandonou o bloco e a esferográfica, as duas mãos postas na cintura de vespa, com indignação.

“Maluco, grande maluco, o que se passa na tua cabeça? Desce já daí para baixo!”

Surpreendida, humilhada – “Como foste tu aí parar? És agora um pássaro, Vassili?”

A mesa inteira está suspensa da súbita cena.

Num ápice já todos compreendem, ele é o marido dela. Mas devem os clientes manter-se sentados, quietos, para ver o que sucede, ou devem levantar-se e reagir de imediato? Que abuso é aquele de se fazer convidado entrando pelo telhado? E com que intenção, e para quê? Claro que uma vintena de homens não pode reagir de forma homogénea, há mesmo aqueles que são da opinião de que se deve intimar o intruso a descer dali, imediatamente, nem que seja à paulada. Outros há ainda que permanecem sentados, a rir, surpreendidos pela ousadia do tipo, pelo seu desplante, pela sua falta de vergonha, e acham que o jantar deve continuar até o tipo desistir. Da forma como se encontra empoleirado, não corre o risco de rebolar e cair no prato – “Por onde o gajo subiu que desça, e lhe faça bom proveito...” Mas a verdade é que ninguém consegue desviar a vista da pessoa que ali está parada diante de todos. As mulheres também se encontram no pátio, a olhar para aquela figura que parece ter descido da aragem da tarde para se enroscar nas telhas. Até a cozinheira se encontra no pátio a admirar o estranho acontecimento. Alguém sugere que Olga faça alguma coisa, afinal ela é quem o conhece bem, afinal ele só pode ter vindo encarrapitar-se ali por qualquer assunto relacionado com ela.

Olga compreende e avança na direcção do telhado.

“Vassili, grande estúpido! Desce daí, Vassili!” – E encoraja-se mais, com o ruído de fundo – “Olha, se queres saber, por mim, estares aí é o mesmo que não estares. Já não gosto de ti. Eras o meu marido, já não és. Estás livre. Agora, o que queres tu de mim ? Não vês que estás a estragar a comida de todo este pessoal?”

Mas o ucraniano continua onde está, escarranchado nas telhas, de joelhos afastados, as longas mãos pendentes sobre eles, e só agora se repara que o homem alberga no colo um volume invulgar. Olga sabe, é o anorak de Inverno que o estúpido trouxe para cima daquele telhado. E porque transporta ele um agasalho de Inverno, numa noite de Verão? Porquê? Todos acham que Olga deve perguntar a razão, talvez assim se entenda alguma coisa daquele momento tão único. Então a rapariga, ao mesmo tempo intimidada e compelida pela compreensão de todos, avança na direcção do beiral, de forma a ficar o mais próximo possível do trepador.

“Diz-me, Vassili. Porque trouxeste contigo o teu anorak?”

Olga vai mais longe – “O que tens dentro do teu anorak, Vassili?”

E uma outra ideia, tangencial, passa–lhe pela cabeça - “Ah! Já sei, aposto que tens aí escondida uma garrafa de uísque. Aposto que já estás com os copos, e foi por isso que subiste aí para cima... Foi ou não foi, Vassili?”.

Mas o ex-marido, em vez de responder, põe-se a desembrulhar o anorak, e alguma coisa muito diferente dum gargalo de garrafa começa a surgir no seu colo, até que não é propriamente um gargalo de vidro o tubo que sobressai no meio do agasalho. Também é liso mas de uma outra textura, também luz mas com uma outra intensidade. Tem uma outra dimensão, uma outra forma, muito diferente da forma duma garrafa. Não é preciso falar, cada um dos presentes transformou-se num alvo.

“Vassili?” – diz ela, sentindo que de súbito, atrás de si, uns fogem, outros se deitam no chão. Alguém telefona. Ouve-se a mesa andar.

A rapariga, cada vez mais indignada.

“Vassili! O que é isso que tens aí contigo?”

E recua exactamente até ao meio do pátio.

Vendo bem, está no sítio exacto, pois também se encontra a meio do percurso entre a mesa em T e aquela coisa encoberta pelo anorak. Tem as mãos unidas sobre a blusa de brilhos, o cinto a rebentar nas ilhós, as pernas nuas, a saia do tamanho dum palmo, as pulseiras de pérolas pintadas, os cabelos espalhados pelos ombros, a esferográfica e o bloco por terra, e é agora que todas as coisas podem acontecer, até porque à sua volta não está ninguém. Não se ouve um som, discreto que seja. Nada de nada. Espera-se apenas por um ruído que trespasse a noite, um estampido que separe a luminosidade da noite em duas metades, para se poder dizer aqui alguma coisa ultrapassou o seu limite. Mas não vai ser assim. A rapariga atravessou várias fronteiras, a rapariga sabe o que muitos não sabem. Ela sabe, por exemplo, que só há destino quando parte da ordem imutável se pode subverter, e o resto é caça. Então o que pode ela mudar naquele momento? Como pode intervir? Como pode fazer deslocar o centro do alvo para outro lugar? - Em cima do telhado, o homem mantém a coisa perigosa meio à mostra, meio encoberta. Talvez essa inexactidão tenha feito decidir a rapariga estrangeira. Pois verdadeiramente, em duas fracções de segundo, nada mudou, mas ela diz.

“Oh! Vassili! Porque tens essa porcaria aí, dentro do teu anorak?”

O cano da porcaria apontado na sua direcção, o meio do pátio.

“Vassili?”

O cano apontado.

“Grande maluco! Se em vez dessa porcaria tivesses trazido o teu Scripka, tudo seria diferente. Agora, tu estavas aí, pegavas no teu velho Scripka e punhas-te a tocar, e eu fazia assim, como lá em Kiev. Assim e assim...” E a rapariga rodopiou no meio do pátio, fazendo a cabeça oscilar de lado a lado. O cano em frente. “Vassili?” – disse ela quando se virou, com os braços no ar. O cano em frente. O olho dele, fechado, em frente. Ela então fala em ucraniano. Rodopia de novo. O trepador continua sem se mexer, agarrado ao casacão branco, de onde desembrulhou a coisa incómoda que aponta. Ele baixa o cano da coisa incómoda, ela continua a abanar-se e a dizer-lhe frases curtas, que terminam invariavelmente em Scripka.

“Scripka?”

“Sim, grande maluco...” – diz ela, em português. “Mas agora tens de descer, já não posso esperar mais. Desce daí, Vassili, o que eu prometi está prometido, vai, vai...”

No pátio da Taverna das Donas, está ela, a mesma rapariga, estão os mesmos olhos, a mesma penugem, os mesmos cabelos revoltos, a mesma cintura apertada, as mesmas pernas brancas, as mesmas ancas duras, cobertas por uma saia de palmo. A mesma mesa com os mesmos pratos, as quatro caçarolas com os mesmos animais guisados, as mesmas bebidas, algumas delas a meio, a maior parte delas intactas. A mesma parreira verde que na tarde albergou os ingleses. As mesmas empenas baixas, os mesmos quatro panos de telha a formar o quadrângulo. O mesmo pão partido aos bocados. Mas não será certamente por essa imobilização no tempo e no espaço, que ele embrulha a coisa perigosa definitivamente no agasalho almofadado. Seja por que razão for, como um enorme gatarrão, em suas sapatorras de ténis, o ex-marido gatinha por fim ao longo das telhas, em direcção ao algeroz por onde subiu, e depois em direcção ao chão por onde vai galgar a estrada. Leva consigo o objecto e o anorak. E ouve-se na sua pesada aproximação ao solo, o corpo a fazer – “Paf!” Claro que a rapariga ainda não sabe se vai cumprir o prometido, nem sabe tão pouco se ele deseja que ela vá cumpri-lo. O próprio desejo tem várias moradas, nem sempre contíguas. Tudo o que ela sabe é só o que lhe parece, e naquele instante parece-lhe apenas que o restaurante onde trabalha há um ano, em escassos minutos, ficou deserto.

Mas isso não a surpreende, nem faz de si um alvo fácil, que ela não deixa. Está habituada ao silêncio da neve. Na sua confusão entre vocativos, singulares e plurais, ela abandona a mesa sobre a qual se encontram pedaços de doze coelhos abatidos e cozinhados, alguns deles espalhados pelos pratos, para chamar de porta em porta, a desafiar os escondidos. Cómico que todos tenham desaparecido.

“Então onde tu estás, tu, e tu?” – pergunta ela, a rir. E noutra direcção - “Aparece, pá, que eu ainda estou viva!”

É assim mesmo que a vamos deixar, retomando o seu trabalho, entre a mesa e a cozinha, à espera que as três sócias e os clientes saiam do escuro onde se disfarçam. Pelos seus cálculos, ninguém terá tido tempo de tomar o carro nem de fugir para longe. Estão todos por ali, alapardados no escuro dos móveis e das portas. Sim, foi só um breve intervalo, nada se perdeu, nada se ganhou, será só uma questão de esperarmos que a vida se recomponha, como a espingarda se carrega e descarrega entre as mãos, como a caça no mato a cada estação se multiplica. Ela sabe que o intervalo que está a viver é insustentável. E nós também. Deixemo-la a rir, no meio do pátio, à espera que eles regressem, e cada um retome o seu sítio, entre uma faca e um garfo.

Como desde o início se previu.
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Original escrito em agosto de 2008
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