quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Depoimento * Eduardo Lourenço

Trapezista do Absoluto

Lídia Jorge *

1.

Numa notável entrevista que Eduardo Lourenço deu à revista Ler, disse o autor d’ O Labirinto da Saudade que se sentia em dívida para com a Humanidade inteira. A confissão não é de pouca monta e daria para um leitor desprevenido pensar que se trata duma jonglerie destinada a ser lida ao contrário - um homem que assim se mostrasse devedor diante de um tal absoluto, bem poderia ser aquele que se sentisse credor duma dívida que não cobrou.

Mas não é isso que acontece. Pronunciada por Eduardo Lourenço, aquela afirmação deve ser lida de forma literal, sobretudo se tivermos em conta que uma tão grande culpabilização vem acompanhada pela ironia que caracteriza o seu autor, e reflecte tanto da sua desistência sábia quanto do seu espírito bem humorado. Ela revela o lado luminoso que Eduardo Lourenço bem poderia ter emprestado a Pessoa para ilustrar o heterónimo que lhe falta, aquele que fosse ao mesmo tempo jovem sábio e trapezista do absoluto, a máscara de adolescente risonho que o poeta não pôde criar. Em Eduardo, talvez seja essa alegria encantatória o impulso que explica o desprendimento de si mesmo, a entrega do seu saber a causas, e sobretudo a aplicação do seu olhar original sobre o Mundo ao serviço da contingência diária..

2.
Ou por outras palavras, presume-se que Eduardo Lourenço não deva nada a ninguém. Durante décadas, aquele de quem se diz que ensinou Portugal a pensar, aplicou grande parte do seu pensamento na decifração do valor dos outros, serviu os outros, procurou para eles lugares de significação na Literatura, na Arte, na Política, na Comunicação, nos modos de ser e até nos costumes. Ou como já alguém disse, ajudou a criar as nossas estátuas de pedra, enquanto sobre si, deixou que o silêncio caísse. Mas numa altura em que se começa a avaliar a dimensão da sua obra formal, e a reunir a obra dispersa, é impossível não perceber quanto lhe somos devedores. A lista de dívidas é longa, ainda que não aleatória.

O que lhe devemos, de forma prioritária?

3.
Devemos-lhe acima de tudo ser quem é, e depois devemos-lhe o facto de se ter mantido longe do país, e a partir dessa distância tê-lo interpretado na crueza da sua fixidez, sem nunca o ter feito com a soberba que caracteriza os estrangeirados. Apesar de ter reconhecido como ninguém a dificuldade de ser que faz parte da vida mental desta “margem da margem”, essa decifração a que se entregou como destino nunca lhe deu passaporte para o lugar do escárnio. Pelo contrário. Com os filósofos da grande decepção na bagagem - Nietzsche, Kierkegaard, Sartre - Eduardo Lourenço sempre falou do seu país a partir de longe, com a proximidade e a delicadeza de quem analisa um objecto amado. O que não é coisa pouca. Na sua escrita inclassificável, entre poesia e ensaio, existe sempre essa marca de projecção psicológica entre clarividência filosófica e tensão emocionada. A mesma emoção que deixa transparecer nos seus improvisos retóricos que os torna únicos.

Aliás, se eu tivesse de agradecer pessoalmente alguma coisa a Eduardo Lourenço, do muito que há para agradecer, escolheria aquele discurso de há dez anos atrás, ocorrido num fórum em Frankfurt, quando teve de falar de improviso sobre a Europa, as religiões e o futuro. Num primeiro momento, deu a impressão que iria desaparecer, entre Mário Soares e Dietrich Genscher. Mas afinal o que disse, numa voz demasiado frágil para a dimensão do palco, parecia absurdo, e acabou por ser profético. Pena que aquilo que disse não tivesse sido traduzido em todas as línguas do Mundo.
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* in revista Visão (2 de outubro de 2008)




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