segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Crónica * Agustina Bessa-Luís

Como ninguém

Lídia Jorge *

Neste momento ainda estamos frente a frente e este é um comboio para Hamburgo. A carruagem está repleta de passageiros de olhos descidos. Agora atravessamos uma planície pelada, agora a planície enche-se de árvores, agora as catenárias desenham aranhas no céu, agora as estradas e as casas desenhadas à beira dos rios vêm ao nosso encontro e desaparecem para além da vista. Agustina vai sentada no sentido do correr da paisagem, e diz-me – “Lá está um homem português”.

Levanto-me e não vejo o que anuncia. Na direcção do seu olhar só encontro pessoas de aspecto germânico. Nem um único bigode escuro, um único olho preto, ninguém com o porte sumido próprio dum rosto luso. Agustina está confundida. E de novo a planície pelada, de novo um renque de casas fantásticas, como se fossem desenhos planos rodando sobre a paisagem. De novo, a fila dos olhos tombados. Mas Agustina não desiste. Insiste – “Vê-se que é português pelo mover dos lábios…”

Reparo com mais atenção e de facto alguém está a sorrir na direcção de Agustina, e não é um homem escuro, nem de olhar melancólico. Curiosamente é uma pessoa de compleição germânica, que já se levanta, já se aproxima, curva-se na direcção do nosso assento e começa a falar português. Afinal, Agustina acertou no vaticínio, está encantada. Deve ser um professor, provavelmente um professor de literatura brasileira, já que o acento denuncia aqui e ali uma passagem pelo Rio, talvez por são Paulo. Eu mesma gostaria de saber alguma coisa sobre a história do seu idioma correcto, mas entretanto, a conversa do homem, em pé, postado no corredor, já se dirigiu para outro lado. O homem reverencia Agustina, fala calmo e claro, como se desenhasse palavras no ar, ali dentro da carruagem. Encantada, Agustina escuta – “Claro que a reconheci de imediato, como não? E já agora gostava de obter uma informação. Dá-me licença?”

Agustina dava licença. O passageiro prosseguia, todo inclinado para o banco – “É verdade que chegou a encontrar-se com a Anna Hakhmátova? E confirma que ela lhe perguntou com quem a sua escrita se parecia? E que a Agustina Bessa-Luís, respondeu que se parecia com Dostoievski? E que a vaidosa ficou desiludida? Claro que a Hakhmátova não percebeu que era apenas uma gentileza sua para com a cultura eslava, não percebeu…”

O homem estava curvado sobre o banco onde Agustina permanecia sentada, risonha, divertida com a situação, a responder baixo com acenos de cabeça, a completar com pormenores um relato que afinal tinha andado de mão em mão até chegar àquele homem que a visitava naquela situação extraordinária. Cada vez mais solícito, o homem – “Pois foi pena que tivesse respondido assim, muita pena. Porque a senhora, literariamente falando, não tem ascendentes legítimos. A senhora bebeu do Goethe, bebeu do Kafka, bebeu do Musil, e é diferente de todos eles. Porquê o Dostoievski, porquê? Possuo todos os seus livros alinhados na estante. A senhora não precisa de parentes nem de formatos, a senhora escreve como ninguém… ”

E o homem germânico, de fala portuguesa de acento lusitano, com toques brasileiros, arredou-se para que o carrinho dos mantimentos passasse. O carrinho passava com os seus empurradores, e Agustina continuava a escutar, divertida. O homem germânico disse – “O seu talento é feito de versatilidade, velocidade, multiplicidade, invenção, opulência, toda uma orgia genesíaca que varre os seus milhares de páginas com um sopro entre o hiper-lúcido e o ébrio, e envolve de genialidade todos os géneros a que se dedica…” Mas chegando aí, Agustina começou a sorrir de outra forma. “Pois está muito bem, disse ela…” Agora o homem fazia o elogio sentado, mesmo em frente, porque alguém se tinha levantado do lugar. Tinha pedido licença e falava manso, com conhecimento de causa, recuando até a A Sibila e saltando para O Bicho da Terra, e logo indo até a O Mosteiro, e Fanny Owen, e Vale Abraão, e por aí adiante. E Agustina, a pouco e pouco começou a ficar desatenta, a olhar em volta, até que disse – “Sabe o senhor? Deixámos passar o carrinho e estamos as duas cheias de fome…”

O homem germânico levantou-se dum salto, olhou para o relógio, penalizou-se por ter interrompido o nosso sossego, ter deixado passar o carrinho. Agora, ter-se-ia de ir ao bar, mas ele não queria que Agustina Bessa-Luís se dirigisse ao bar. Aquele comboio era um transporte seguro, e no entanto, sempre fazia safanões, e depois ter-se-ia de comer em pé, com a carruagem do bar completamente atafulhada de gente àquela hora da tarde. Mas ele, penalizado, deferente, ia já resolver a situação num abrir e fechar de olhos. Ele mesmo iria ao bar comprar umas bebidas e umas sanduíches. - O que desejávamos? Com picos ou sem eles? Com pão preto ou pão branco? Salame ou queijo de barra? Salada verde ou vermelha? E copo ou palhinha? Com palhinha, claro. E nada de dinheiro, ele tinha todo o gosto em oferecer aquele lanche a Agustina Bessa-Luís e à sua acompanhante. - E agitado, cumpridor, sorridente, dirigiu-se ao seu próprio lugar, remexeu nos seus sacos, nos seus casacos, e desapareceu na direcção da carruagem-bar. Por sua vez, nós arrumámos os jornais, e preparámo-nos para lanchar. Mas Agustina disse – “Este tipo não está a dizer a verdade. Acho que é um português que se naturalizou alemão. Não estou a ver um alemão desenvolver este arrazoado desmedido. Um alemão não cumprimenta de longe, daquela maneira. Não mostra a emoção, é um disciplinado…”

Entretanto olhávamos para a carruagem e víamos os cabelos loiros, os cabelos palha, os olhos fechados dos passageiros. Quando o homem voltasse com o nosso lanche, iríamos querer saber onde vivia, o que fazia, porque estava ali. As duas, unidas na suspeita, pretendíamos despir aquele homem do seu anonimato. Afinal, era injusto, dizia a Agustina – Os leitores sabem tudo sobre nós, nós não sabemos nada sobre os leitores. Naquele caso, iríamos equilibrar a situação, assim que o homem aparecesse na porta ao fundo. Entretanto, lá fora corriam árvores, rios, castelos, outeiros, casinhas enfileiradas como nos livros das fadas, catenárias desenhando rendas de aço pelos ares, e o homem não vinha. Passaram vinte, trinta minutos, três quartos de hora e não vinha, o homem. O que teria acontecido? Sobre o seu assento, a gabardina dobrada. “Vá lá ver se o homem está no bar. Talvez tenha encontrado o Kandaré ou o Kundera e esteja entretido a fazer-lhes o panegírico. À cautela, traga as sanduíches…” – disse a Agustina.

Fui. No bar, o homem não estava, nas carruagens intermédias também não estava. A gabardina continuava ali, dobrada sobre o assento. O comboio não tinha parado. Entretanto a tarde avançava para a noite, as árvores desapareciam, as casas tornavam-se vultos, o campo sumia-se, as estradas eram filas de luzes paradas, pontuando as luzes corridas dos carros. De onde em onde iluminações, uma povoação que se aproximava, rodava, engolida pelo escuro. À nossa volta, passageiros solenes dormiam. E a gabardina além, pousada sobre o assento. - Ter-lhe-ia dado uma coisa ruim? Estaria escondido num WC? Teria passado a uma carruagem longínqua, de propósito para nos pregar uma partida? Agustina disse – “Vai ver que é um espião que anda por aqui. O melhor é esperarmos. Ele há-de vir, mais que não seja por causa da gabardina…” E entretanto o comboio avançava planície fora, entrava nos subúrbios, nas luzes da cidade, nos milhares de carris, nas grandes bocas das estações, nas plataformas corridas, e os passageiros levantavam-se, procuravam as bagagens, encaminhavam-se para a saída. Nós só haveríamos de sair depois da gabardina, tínhamos os olhos num lado e no outro, o olhar na plataforma onde nos haveria de esperar a Kárin von Schweder-Schreiner. Sim, lá estava a nossa amiga a acenar. E de repente, um assombro – Um outro homem levantou-se da janela, placidamente, pegou na gabardina, vestiu-a e colocou-se na fila de saída. Acabava de desaparecer o único objecto que nos ligava ao homem. O que queria dizer que o lusitanista havia saído definitivamente da carruagem, na altura em que se dirigira ao bar. Como proceder?

Arrastávamos connosco as bagagens. Ao fundo dois hospedeiros vigiavam a descida. - Deveríamos falar-lhes? Fazermo-nos entender sobre o que nos havia acontecido? Alertá-los para o provável desaparecimento de um passageiro? Alguém que havia reconhecido aquela escritora, e lhe descrevera os livros, a elogiara, a incensara, a fizera da família de Dostoievsky e Kafka, mais do que todos eles, e depois havia desaparecido no interior do comboio com a promessa de duas sanduíches?

“Não faça isso…” – disse a Agustina. “Quem vai acreditar em si? Como prova dessa conversa, nem ao menos dispomos duma gabardina esquecida…” Mas foi já perto da porta, encavalitadas nas malas de rodas que a Agustina concluiu – “Isto só quer dizer que temos de continuar a escrever. Está visto que nem a grande nem a pequena intriga estão resolvidas. A coisa concreta, a gente abomina. Policiais são para o pobre do Simenon, coitado...”

E quando a sua mala passou para as mãos da Karin, e nos pusemos a caminhar pela estação de Hamburgo adiante, Agustina Bessa-Luís começou a rir com gosto. O gosto próprio duma mulher que sabe que nenhum enigma, por difícil de desvendar, a encontra desprevenida. Obrigada até ao fim da minha vida, por todas as suas viagens, Maria Agustina.
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* in revista Egoísta (dezembro 2006)
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1 comentário :

  1. Como me diverti! E de que maneira a reconheci! Obrigada.Zilda Cardoso

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