quinta-feira, 1 de março de 2007

Depoimento * Move a história do desencontro

Aposta em Patrícia Reis

Lídia Jorge *

“Morder-te o Coração” não é uma proposta canibal. Pelo contrário, é um “Menina e Moça” moderno, um choro sobre o sair e o não sair de casa para longes terras, desdobrado em duas vozes que só se encontram definitivamente nas páginas iniciais deste livro. O resto é busca e aposição, memórias cruzadas no desencontro dos tempos, justapostas pela força dos discursos em primeira pessoa, num esboço de teatro falado, e o resultado é bom. Ou por outras palavras, por mim, este é o primeiro livro de Patrícia Reis que faz pensar que a escrita de vez em quando resvala dos lugares comuns para o lugar das boas surpresas, e por essa singularidade se deve apostar nesta escritora enquanto autora de ficção.

Porque não é fácil escrever ficção, ao contrário do que se faz constar. Não basta ter uma história. Uma história, por mais imprescindível que seja, nunca chega. Uma história, enquanto tal, nunca passa duma narrativa sem verdadeiro objecto, se o ponto de vista não permite uma proposta de mudança em face da realidade, ou pelo menos não avança dados para uma interpretação que a mova do seu lugar fixo do acontecido, para o lugar onírico do desejado. Ora o que Patrícia Reis faz neste seu livro é isso mesmo, propor um ponto de vista que move a história do desencontro entre duas figuras romanescas na direcção da sua vitimização pelo efeito das histórias familiares e da História colectiva. Ou a imposição dum destino. É verdade que ao longo da balada de despedidas de que é feita esta narrativa, nem sempre as duas vozes são autónomas, é verdade que por vezes Patrícia Reis ainda não cria duas personalidades em corpo inteiro, e até nem parece preocupar-se em mudar o sexo da voz, como se esse artifício não lhe fosse imprescindível. Aliás, sobre esse aspecto, a história da reclusa que escrevia cartas com a mão direita a um homem que não conhece, e com a esquerda escreve respostas a si mesma, com uma letra diferente, constitui uma metáfora da própria dualidade simulada no próprio livro. Eu diria que as diferentes letras de imprensa deste livro não são duas letras caligráficas. São só uma. Mas não interessa. O que importa é que essa dualidade incompleta gera uma narrativa airosa, um voo semântico semelhante ao da associação ligeira das nossas cabeças dispersivas, e o resultado é de uma escrita desprendida e ágil ao serviço dum desencontro tácito.

Aliás, a escrita é precisamente o maior mérito deste livro breve, espécie de cruzamento de pensamentos íntimos, desarrumados no tempo, mas não no sentimento, dispostos de modo a falar de vidas desarrumadas na Geografia da Terra e nos acontecimentos da História. Uma espécie de inventário de acasos que fazem a sede deste amor absoluto, para que tendem as personagens Xavier e Maria, transformá-los não apenas em figuras de amor, mas também em agentes da Crónica do Mundo. A dado passo pode ler-se neste livro – “A par dos pedaços de vidas que fui recolhendo, comecei a coleccionar, com entusiasmo, números imperceptíveis: o terramoto de 26 de Dezembro de 2004 modificou o Pólo Norte em 2,5 centímetros. A Terra ficou, por isso, mais redonda, menos achatada nos pólos. Sofreu uma alteração de uma parte em 10 milhões, um pequeno amuo da natureza que não é possível de ver. E, como se tudo permanecesse igual, os dias andam mais depressa. O tsumani, a onda do porto, diminuiu o comprimento dos dias em 2,68 microssegundos. Para que queria eu saber estes detalhes? Porque me dariam satisfação? Para que fosse possível compreender a morte de mais de 250 mil pessoas? Também a Terra tem os seus gestos políticos”.

Precisamente, esta é a afirmação que me interessa – “Também a Terra tem os seus gestos políticos”. Prescindo da ingenuidade. - As apostas que fazemos uns nos outros nunca escapam ao efeito da contiguidade e da semelhança. Aposto em Patrícia Reis na esperança de que ela saia dos discursos interiores esperáveis, para os inesperados, aqueles que são contaminados pelo decurso da vida onde o outro, a realidade e o seu insondável mistério batam horas, ao mesmo tempo, no grande escuro do Espaço e no interior dum pequeno coração. Tenho a certeza de que “Morder-te o Coração” caminha a grandes passadas para lá. Esse local onde eu mesma quereria estar.
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* publicado na revista "Os Meus Livros", março de 2007
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