segunda-feira, 7 de março de 2016

Memória - João de Deus


O Alfabeto de João De Deus

Lídia Jorge *


Em frente do quadro preto, o  nosso colega abriu os braços, enviou o olhar para o fundo da sala  e disse – “A Vida, poema de João de Deus”.  Baixou os braços e estendeu as duas mãos como se fosse oferecer um material precioso aos seus companheiros - “ A  vida é o dia de hoje”.  Recolheu os braços, mas não as mãos que deixou estendidas -  “A vida é ai que mal soa, A vida é sombra que foge.” E  ao passar pela palavra ai,  elevou a voz  em tom de fundo suspiro. As mãos estavam compostas  junto  à pequena camisa branca. O cinto preto fazia dele um homem em miniatura. Um lacinho azul criava um tom de cerimónia tão alto que apetecia chorar. Ele  levou os braços de novo adiante  e falou de neve, agitou-os quando falou do fumo que se esvai, e do momento que passa, depois juntou as duas mãos  e encostou a cabeça  aos dedos como se pensasse, e pronunciou -  “Mais leve que o pensamento”.
Nós estávamos siderados, sentados, elevados e ao mesmo tempo diminuídos pela perícia do nosso colega trajado a rigor. Então ele falou de vento, folha, flor, corrente, sopro, estrela cadente, ave, nuvem, mares, ondas, pena  e asas, e a cada  uma dessas  palavras cheias que recitava, os seus braços faziam um gesto que se assemelhava em alguma coisa  com o ser invocado. Os braços do nosso colega ondularam,  tremeram,  voaram por cima da sua cabeça,  e todo o seu corpo se encolheu  como se tivesse sido trespassado por uma dor, e depois se alongou como se dela tivesse saído ileso, quando  atirou para o chão, e depois para o ar, os quatro  últimos versos -  “A vida, pena caída, Da asa de ave ferida,  De vale  em vale impelida,  A vida o vento a levou!” Disse ele. Nessa altura, nós não sabíamos o que era o aplauso. Ficámos silenciosos, estarrecidos, aprisionados num momento que não queríamos que se movesse. Mas moveu-se. O nosso colega regressou à primeira carteira, ainda a tremer, todos nós  a olharmo-lo  com o respeito dos  súbditos, e eu,  a partir do meu lugar,  não conseguia segurar o instante.  Foi assim que aprendi a pronunciar a primeira letra do alfabeto, aquela que ensina a  decifrar o enigma da transitoriedade, e com a qual se escrevem todas as palavras do mundo.


*In Efeméride
8.3.2015
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