Em frente do quadro preto, o nosso colega abriu os braços, enviou o olhar
para o fundo da sala e disse – “A Vida,
poema de João de Deus”. Baixou os braços
e estendeu as duas mãos como se fosse oferecer um material precioso aos seus companheiros
- “ A vida é o dia de hoje”. Recolheu os braços, mas não as mãos que
deixou estendidas - “A vida é ai que mal soa, A vida é sombra que foge.” E ao passar pela palavra ai, elevou a voz em tom de fundo suspiro. As mãos estavam
compostas junto à pequena camisa branca. O cinto preto fazia
dele um homem em miniatura. Um lacinho azul criava um tom de cerimónia tão alto que apetecia chorar. Ele levou os braços de novo adiante e falou de neve, agitou-os quando falou do fumo
que se esvai, e do momento que passa, depois juntou as duas mãos e encostou a cabeça aos dedos como se pensasse, e pronunciou - “Mais leve que o pensamento”.
Nós estávamos siderados,
sentados, elevados e ao mesmo tempo diminuídos pela perícia do nosso colega
trajado a rigor. Então ele falou de vento, folha, flor, corrente, sopro,
estrela cadente, ave, nuvem, mares, ondas, pena e asas, e a cada uma dessas
palavras cheias que recitava, os seus braços faziam um gesto que se
assemelhava em alguma coisa com o ser
invocado. Os braços do nosso colega ondularam,
tremeram, voaram por cima da sua
cabeça, e todo o seu corpo se
encolheu como se tivesse sido
trespassado por uma dor, e depois se alongou como se dela tivesse saído ileso,
quando atirou para o chão, e depois para
o ar, os quatro últimos versos - “A vida, pena caída, Da asa de ave
ferida, De vale em vale impelida, A vida o vento a levou!” Disse ele. Nessa
altura, nós não sabíamos o que era o aplauso. Ficámos silenciosos,
estarrecidos, aprisionados num momento que não queríamos que se movesse. Mas
moveu-se. O nosso colega regressou à primeira carteira, ainda a tremer, todos
nós a olharmo-lo com o respeito dos súbditos, e eu, a partir do meu lugar, não conseguia segurar o instante. Foi assim que aprendi a pronunciar a primeira
letra do alfabeto, aquela que ensina
a decifrar o enigma da transitoriedade, e com a qual se escrevem todas as palavras do mundo.
*In Efeméride
8.3.2015
8.3.2015
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