sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A Páginas Tantas * De "O Vento Assobiando nas Gruas"

O que queres dizer com isso?

Milene assoou-se demoradamente, a tomar consciência de que existia e era alguém no mundo, entre os grãos de areia. Os grãos de areia colocados, durante um instante, no seu sítio exacto. Se falasse na dor, alguma coisa em volta, indispensável, poderia morrer. Não fales na dor. “Oh, pá, não fales na dor…” – pediu ela.

Antonino bebia cerveja pela garrafa. A luz entrando pela garrafa partia na direcção da areia e barrava o avanço da treva. Ele limpou a boca com o punho da camisa. Aves caíam do céu sobre a água. A dona do bar veio dizer –“Estive quase a morrer antes de aqui vir ter. Parece mentira mas este local salvou-me…” Antonino, a rir, mostrava as três partes separadas na fileira dos dentes. Se Milene pudesse, não pediria nada a ninguém, não diria nada a ninguém, ela só faria aquilo que na natureza e na vida estava por fazer. O mundo por completar, a vida por construir, por limpar, arrumar, conservar e servir. Se ela pudesse. Não podia, achava-se uma pessoa bera. Podia, no entanto, não acrescentar nem mal nem treva onde sabia que já havia. Podia não colaborar com o que criava dor. Não sabia o que era o mal, sabia o que fazia mal.

Do mal conhecia os seus efeitos, não as suas raízes. Ainda que não o pudesse dizer. Pois se sentia isso, não tinha palavras. Se tinha palavras, pensava numa outra coisa, não sentia isso. O que ela quereria era ser lúcida, que a sua cabeça estivesse iluminada de ponta a ponta, ligada à claridade e à inteligência, mas sabia que não era assim. Dentro da sua cabeça, como numa pista de carros de feira, os néons apagavam-se e acendiam-se, fazendo intervalos, encobrindo zonas à vez, criando crateras de insignificância viradas contra a luz. Quando essas se iluminavam, logo outras mergulhavam na escuridão. O cérebro feito para nunca abarcar a totalidade. Que palavras para dizer isso?

Antonino a rir por causa do dourado do sol – “Oh, pá! Correcto, não vamos falar da dor…”

Ela a rir – “Não, não, nunca vamos falar da dor. Pois para quê falar nisso? É assim, o Antonino não fala da dor, eu não falo da dor, então é como se essa coisa fedorenta não existisse…” – disse ela, assoando-se outra vez, ruidosamente, sentindo-se alguém no meio de um mundo terrestre onde não se via a dor. A dor deveria existir, em algum esconderijo húmido ou atrás duma ruga de areia, mas não se via. E se não se via nem se apalpava, não existia.
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* Página 306/307 de “O Vento Assobiando nas Gruas”
 Publicações Dom Quixote (2002).

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