segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A Páginas Tantas * De "Contrato Sentimental"

Identidade

1.

Muitos são aqueles que apresentam razões fortes para duvidar, mas eu tenho a certeza de que Portugal existe. Ainda há pouco tempo atravessei o território de Norte a Sul, demorei sete horas, sempre a abrir, as auto-estradas funcionaram na perfeição, e por onde elas passavam havia bandeiras verde-rubras hasteadas em locais inimagináveis – encostas de montanhas, cimo de palheiros, telhados de igrejas e até em carros de bois, atadas aos fueiros da frente, eu as vi a acenar, como se a paisagem fosse uma parada. Isto aconteceu um mês depois de a Selecção Portuguesa ter ido à Suíça como favorita e os rapazes se terem portado mal. Quando perguntei a uma funcionária da estação de serviço por que razão ainda mantinham a bandeira arvorada no alto dos cedros, ela olhou-me com um certo desprezo – “Que importância tem? Não é por perdermos que deixamos de ser portugueses.” Já no regresso da viagem, vim a olhar para os campos e a pensar no poema que José Emilio Pacheco escreveu sobre o seu país. Vou procurar traduzir para português o que ele pensou em castelhano do México.
Não amo a minha pátria.
O seu fulgor abstracto é inacessível.
Porém (ainda que soe mal) daria a minha vida
Por dez dos seus lugares, certas pessoas,
Portos, bosques de pinheiros, fortalezas,
Uma cidade desfeita, cinzenta, monstruosa,
Várias figuras da sua história, montanhas
- e três ou quatro rios.
Eu também.

Posto isto, convém dizer que eu tinha feito aquela viagem-relâmpago em direcção à Corunha, e quando voltava, ali mesmo onde a paisagem se abre no meio do arvoredo, a terra se prepara para a passagem dum rio, e a fronteira se aproxima a toda a velocidade, percebi que lá estava a placa branca e azul a indicar o país de chegada. A meio da placa de alvura impecável, podia ler-se Portugal, e por baixo, muito bem pinchada, a palavra lixo. Depois de centenas de quilómetros, aquele era o primeiro incidente na estrada. Fiquei contente, abrandei a marcha – Eram dois semáforos, numa placa só, a indicarem o caminho de casa.

Era preciso ter sorte. Vinha eu a pensar no poema do escritor mexicano, e a cogitar sobre umas linhas que me haviam sido encomendadas a propósito do futuro de Portugal, e aparecia-me de súbito aquele verso de quatro letras, a fazer-me regressar à genuína morada. Então eu pude confirmar que sim, que Portugal existe, que Portugal tem futuro. Pois o que estava escrito a meio da placa denunciava a marca da nossa inconfundível nacionalidade. Um espanhol teria escrito basura para se identificar, altivo como é, senhor da sua língua e da sua pronúncia. Um galego poderia ter escrito a mesma palavra, exactamente como nós, mas em princípio os filhos da Galiza costumam estimar e idealizar os portugueses, são nossos irmãos confessos. Não acredito na hipótese de que tenha sido mão galega que tivesse anunciado daquele jeito o seu desprezo em relação ao país vizinho, quando se aproximava da fronteira, ou acabando de o deixar, tivesse parado na berma, para expressar naqueles termos a sua vingança. De modo nenhum. A mão deveria ter sido portuguesa, pois a palavra que ali se encontrava, em negro resplandecente, muito bem desenhada, era aquela que já mencionei – lixo. Um verso irradiante que indicava uma fronteira de terra e uma fronteira de alma. Um modo de ser especial, a fazer adeus na superfície branca.

(...)
_________________
* Primeira página de “Contrato Sentimental”
 Sextante (2009)

Tire uma cópia

Sem comentários :

Enviar um comentário