segunda-feira, 26 de setembro de 2011

[ECOS] Do blogue Da Literatura, de Eduardo Pitta


Sexta-feira, Abril 01, 2011


LÍDIA JORGE


No Público:
O sucesso de Lídia Jorge (n. 1946) deve-se à lufada de ar fresco que representou a publicação de livros como O Dia dos Prodígios (1980), primeiro de uma obra hoje canónica, e A Costa dos Murmúrios (1988), simultaneamente ponto de chegada e deslaçamento desse modo de ficcionalizar a História com as ferramentas do realismo fantástico (desenganem-se os que o reduzem à evasão do real). Lídia, que terá lido Carpentier como ele deve ser lido, assimilou bem a lição do caribenho. E, assim que pôde, criou uma língua nova.

Diria que o ponto de viragem se deu com O Vento Assobiando nas Gruas (2002), mas é convicção privada, sem propósito doutrinal, apenas corroborada com o que chegou depois.

A Noite das Mulheres Cantoras deve ser lido ao som das Doce, a girl band (1980-84) que revolucionou a pop portuguesa no tempo pré-europeu que acicatou as cicatrizes da borrasca imperial: «A certa altura [...] apenas possuíamos umas malas que abríamos à noite e fechávamos de manhã, à medida de um corredor de hotel onde ficámos alojados durante seis meses. [...]Era o que nos restava de um tremendo erro de cálculo, um apego extemporâneo do meu pai a uma fábrica de chá nos campos do Gurué.» Solange de Matos não esquece.

Lídia compõe os retratos minuciosos dessas cinco raparigas «com histórias e naturalidades distintas, atraídas em simultâneo desde várias partes de África pelo som de um piano.» A narradora é Solange: usa quatro heterónimos e faz o patchwork da intriga. Madalena Micaia, a voz do grupo, sobrevivendo em África rodeada de «sida e peste». As irmãs Alcides, Maria Luísa e Nani, duas raparigas bem nascidas com quem Solange mantinha uma «ligação subterrânea» desde os bancos do Anfiteatro Um da Universidade Nova de Lisboa. Têm voz de soprano, simétrica à violência dos insultos («Vão cantar para o Huambo.») e pichagens que provocam. Querem que Solange lhes escreva lyrics, sublinham lyrics em inglês, embora Nani, a mais nova, também queira «gerar um movimento, um grito, uma interrupção qualquer.» E depois Gisela Batista, a «maga» pré-punk que desconstrói a sociedade burguesa sem prescindir da segurança material das classes possidentes. Cinco mulheres à procura de um país.

Lídia segura o plot sem perder de vista a História. Ficou dito, ou pelo menos intuído, que a descolonização uniu o grupo. Solange é filha de um regente agrícola nas terras do chá, guarda recordação dos picos azuis do Namuli, em pleno Gurué (Moçambique), em especial daquele dia profético em que o «aluno dilecto» do pai lhes mostrou o panfleto independentista: «Expulsá-los-emos até à sua última pegada.» Dali ao retorno foi um passo, pela rota de Joanesburgo, após a partida dos contingentes. Tinham à sua espera o Sobradinho.

Romance contemporâneo sobre a construção do êxito, pode-se dizer, sem risco de controvérsia, que A Noite das Mulheres Cantoras revisita o Portugal dos eighties. Tudo aí vai dar, mesmo o Mahler que incendeia certa casa da Praça das Flores, entalado entre Grieg e um sucesso da banda: «Ah! Afortunada, afortunada / Por isso esta canção / Te dá tudo / E não quer nada…» Muito interessante o modo como Lídia ilustra o despertar da libertinagem pequeno-burguesa, estocada final nas convenções: «Todos nus à piscina! [...] O slip do José Alexandre era escuro, mas o do Lucena era claro, e quando saltava e se movia era como se estivesse nu...» Com o estardalhaço próprio de iniciados, as pessoas comuns tomavam as prerrogativas dos eleitos (alta sociedade, artistas). Chegando na hora certa, aquela banda de mulheres talentosas, altas e bonitas, trouxe o ímpeto do futuro.

Mais-valia: Lídia escreve com linearidade (vantagem de quem tem voz própria), sugestionando o leitor com delicadas incursões no universo psicológico das suas personagens. Não se pode dizer o mesmo de muitos.
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