sábado, 20 de agosto de 2011

Crónica * Escolhido por um príncipe terrível para seu último travesseiro

Filme em Sagres

Lídia Jorge *

1. Sobre o Promontório escalvado, o vento varre o último vestígio da floração, levanta cabelos e esfarrapa bandeiras, enquanto no interior do armazém transformado em auditório, dezanove visitantes aguardam pela passagem dos filmes projectados em sessão contínua, tendo um deles por tema o significado de Sagres. O clima é de expectativa e viagem. No entanto, mal José Wallenstein surge deitado sobre um fundo de mar, um casal levanta-se. As três crianças que o acompanham resistem ainda durante uns segundos, acabando por se levantar também. No interior do auditório, catorze espectadores permanecem. Em breve serão só onze. Acontece no momento em que Diogo Dória começa a ditar o documento e a música de súbito pára. Um outro casal abandona a sala. As duas filhas, adolescentes, permanecem sentadas, resistindo durante um minuto, depois partem. Eu gostava que tivessem resistido por muito mais tempo.

2. Não nego que me prendo indevidamente à breve insistência dos mais novos, nem sequer ignoro que amplio o seu significado para além do razoável. Sei bem quanto de um raciocínio lógico é feito de irracionalidade, e este é o caso. Enquanto lá fora o vento assobia sobre o grande pedregulho em forma de mão esquerda estendida, e ali dentro o Infante sonha com outros mares, imagino que os filhos dos desinteressados de hoje sejam os interessados de amanhã, imagino que aquele curto desacerto entre gerações, por força das circunstâncias, se vai intensificar.

3. Sim, eu sei. O tempo em que as coisas acontecem ditam parte do seu destino. As comemorações henriquinas dos anos sessenta têm arrastado consigo a marca imóvel das grandezas inchadas. Por essa altura, já a Europa democrática tinha dado volta ao assunto, mas nós ainda lá estávamos. Hoje em dia, reforça-se o ego das pátrias procurando os vários lados da verdade, não os escamoteando. Mais modestos, procuramos aprender com os cometimentos e os erros, e mostrá-los. É por isso que faz pena que o projecto de 2009 para a requalificação de Sagres não tenha sido completado.

Não há como não confirmar. À entrada do Promontório, a Sala de Exposições é ainda um edifício fechado. Das explorações geológicas urgentes e indispensáveis sobre a questão entre Rosa-dos-Ventos ou Gnómon Solar, não ouvimos falar. A dinamização em torno da informação histórica sobre o que foi a Vila do Infante, ou a suposta Escola de Sagres, não está parada por certo, mas parece estar. Entretanto deixou-se de falar de Sagres como destino de visita da Europa, e a candidatura de Sagres a Património da Humanidade parece ter morrido. Aliás, ali, os dinamizadores culturais são os recepcionistas que se desdobram em orientações práticas, e as funcionárias da Loja que vão explicando tudo quanto podem, enquanto vendem uns objectos ornamentais. Não é a folhetos ou vídeos que os visitantes têm de agradecer a melhor informação recolhida, é a estas duas raparigas prestáveis.

4. Assim, não admira que muitos continuem a pensar que Sagres é apenas uma cerveja loira que se bebe devagar. Que outros julguem que Sagres é uma praia baixinha onde o Velho do Restelo amaldiçoava caravelas. Há quem pense até que o assalto de Francis Drake à Fortaleza de Sagres, em 1587, ao serviço de Isabel I, não passe de uma invenção de banda desenhada. Disfunções pós-modernas? Deixemo-nos de rodeios. Há sempre um ponto de encontro fatal entre os cultivadores e os cultivados. Um momento em que os dois campos se unem e são a única face de uma mesma realidade. Aquele desinteresse pelo filme de dez minutos, um mínimo de História, um mínimo de orçamento, um mínimo de Arte, está para o mínimo de tempo que o português comum lhe entrega na sua atenção frágil. Lá fora o vento sopra de todos os pontos cardeais. Este é um daqueles lugares do Mundo que nenhum sonho de Disneylândia deveria tocar. Intimamente, faço votos para que vários filmes, de vária natureza, sejam realizados sobre este Promontório, escolhido por um príncipe terrível para seu último travesseiro. Que esses filmes sejam necessariamente longos e, quando exibidos, que já ninguém saia antes da última imagem.
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* na edição impressa do Público (20 de agosto de 2011)
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