segunda-feira, 20 de agosto de 2001

Conto * Cálice de Porto

Cálice de Porto

Lídia Jorge *

A fachada era sóbria, as cantarias direitas. Adivinhava-se ali o labor do século dezoito, seus homens de calções brancos e rendas ao pescoço, manuseando o compasso e a régua, a vista rectilínea triunfando sobre o desleixo da natureza mater. Parando o passo, na atmosfera ainda se ouvia o rodado do carro de bois transportando a pedra e o cepo, e mais acima, em sentido contrário, o trote rápido dos cavalos do senhor saracoteando as caudas. À primeira vista, a frente da moradia, entalada entre outras como ela, perfilando-se sobre uma rua curva e estreita, parecia remeter quem chegava para dentro de quadrângulos de apertados espaços. O que era uma ilusão. Pois nas traseiras - porque aí já se tinha entrado, depositado o casaco, e seguido por um corredor ladeado por grandes armários de carvalho - dava-se para um amplo terreno com uma álea de glicínias, um renque de tílias e duas faias espampanantes de vergônteas vermelhas.

Para dizer tudo, era Primavera, fim de dia, e a porta do amplo jardim virado a nascente fora aberta para que se pudesse passear livremente entre buchos, com um copo na mão, tamborilando o gelo. Uma rapariga posta no exterior da porta, como uma cariátide serena, segurava a bandeja. Apesar de tudo, havia quem preferisse ficar no interior, para não se perder o efeito do conjunto. Na verdade as janelas de baía entravam por essa maravilha como se estivéssemos num barco que navegasse em terra, com a proa apontada ao rio. E o rio quase branco, quase de ouro, escorregando como um espelho na direcção do Poente. Abençoados os que ali viviam. A alegria e a serenidade do mundo para os que ali viviam. Felizes também os que ali se encontravam para desfrutar dum fim de tarde como aquele, onde se sentia que por instantes, pelo menos por instantes, a harmonia do mundo poderia ser realidade. Convidados, deveríamos ser uns trinta. Eu não conhecia nenhum dos presentes. Um poeta, recentemente laureado, veio ter comigo. Era um grande bem.

Com um poeta deve-se exactamente começar por aí, por elogiar o espaço. Qualquer poeta sabe que se deve começar pelo espaço, e aquele não era um poeta qualquer. Eu tinha também de elogiar a compostura digna dos convidados, a alegria franca das suas gargalhadas altas, os seus trajes rigorosos, os homens sólidos, as mulheres quase belas, uma ou outra bela mesmo, os cabelos bem postos, bem pintados, as roupas caras. Um sentimento de sociedade como havia muito não experimentava. A crença de que por momentos, pelo menos por momentos, o mundo se estabiliza e a pessoa pode encostar a cabeça no sofá de orelhas e descansar do afã da mudança do mundo, do seu sobressalto eternamente revolucionário. Era isso, eu estava sentada agora a um canto da janela de baía, e à medida que os visitantes do jardim iam regressando do bucho e das faias, o poeta laureado, em pé, com seu copo na mão, ia dizendo – “Pois aqueles são os Figueiroas, aqueles são os Linds, aqueles os Castros... Ali vem a Zili. Ao menos foi apresentada à Zili, assim o espero ...”

Sim, já tinha sido, mas agora ali estava ela de novo, de estatura mediana, loira, cabelo frisado, quase bela, ou mesmo bela, quando séria, menos bela quando falada, não importava, ali estava a dona da casa – “Tudo bem convosco?” – perguntou ela. Sim, tudo bem connosco, o poeta laureado e eu. A porta que dava para o jardim fechava-se, a criada cariátide entrava e a porta da sala de jantar abria-se. Havia cinco mesas. O poeta laureado disse-me – “Vai ver. Tenho a certeza de que nos vão colocar na mesa lírio...” Assim era. Como por vezes, nas recepções oficiais, cada mesa tinha ao centro um pequeno arranjo de flores. Rosas, margaridas, amores-perfeitos, calêndulas, lírios. Cinco flores, cinco mesas. Quatro, uma a cada canto, a maior ao centro. Dirigimo-nos para os lírios. Também ali o século dezoito tinha dado lugar ao século dezanove, grandes obras de beneficiação, com certeza, cem anos atrás. As paredes eram altas e menos espessas, do tecto pendia um lustre de vidros de Morano, e acima dos lintéis, molduras douradas onde repousavam gravuras sobre a foz do Douro e a baía de Nápoles. Um Vesúvio fumegava sobre assinatura inglesa. Sobre a toalha branca onde havia tanta renda quanto linho, talheres e talheres em volta dos pratos reluzentes – três grandes facas, três grandes garfos, duas colheres, uma grande e a outra, a de sobremesa, só um pouco menos grande, cinco copos, cinco frisos, e cada guardanapo do tamanho duma toalha, também em linho e renda com monograma bordado. A cada ponta um grande Z. Sentámo-nos lado a lado. Elogiei o requinte. Todo o poeta sensível ao espaço, o espaço tangível como concha da alma. E ele ouviu o elogio, e pediu que eu olhasse para o dono da casa. Olhei. Na mesa central, o anfitrião ficava em frente. O poeta laureado deixou os olhos vaguearem pelo tecto onde havia cercaduras de estuque, em forma de corda e cachos de flores, prolongamentos das toalhas de renda, e disse – “E o que acha dele?” Todo o poeta sabe que o espírito do corpo como o espírito do lugar, começa exactamente pelo seu exterior. Como eu demorasse a responder, ele adiantou-se – “Permita-me que lhe diga...” Baixou a voz – “É um tanso, e não lhe digo mais nada...”

Mas logo diria. A conversa animou a sala inteira, a sala estoirava de brilhos e o poeta comportava-se como poeta. Sorridente e inventivo. Em breve levaria a grande colher de prata à boca, fingindo que dela deixava cair a sopa, e dizia que nela não via uma colher, mas uma verdadeira concha de repartir, uma pá de caldear massa, uma tolda. “Olhe aqui, olhe aqui...” Como se a alavanca do pulso não aguentasse o peso da prata – “Olhe a tolda...” E as facas? Que pegasse eu nas facas. Cada uma do tamanho duma espada. Inclinado para o meu lado, o poeta manejou com discrição um faca. “Avalie, avalie o peso disto, a espada de Afonso Henriques para se comer à mesa...” E os garfos? Os garfos, grandes, deitados, de dentes recurvados virados para cima, eram umas forquilhas de carregar o feno. Um horror, que já não se usava. Em parte nenhuma do mundo se usava. E Zili, ela bem queria pôr aquilo de lado, substituir aquela armaria por um faqueiro de design sueco, leve, simplificado, mas ele, o marido, um tanso. O poeta sorriu, pondo os lábios de lado, para não ser ouvido pelo vizinho da esquerda. Depois, encostou-se mais e disse – “Repare bem, repare. Com quem se parece o dono da casa? Com quem?” Voltei a cravar a vista no homem de barbas e espessas sobrancelhas, o olhar satisfeito daquele homem que presidia à mesa do centro, a das rosas. Um certo remorso por me encontrar a detalhar a fisionomia do dono duma casa que me havia enviado um convite amável. Mas o poeta nem me deu tempo de raciocinar – “Tem a cara do Darwin, já viu? Exactamente. Um Darwin que nunca tivesse entrado no Beagle, nem conhecido as Galápagos. Um Darwin vinhateiro, mais nada ...” E começou a rir. Começámos a rir. Primeiro pouco, depois muito. Como estávamos lado a lado, na mesa redonda, era necessário virarmo-nos um para o outro para rirmos sobre aquela confidência. Era verdade, olhando bem, assim de frente, o dono da casa parecia-se com o velho Darwin antes de ficar calvo. Mas eu não iria corroborar tal parecença, a mim cabia-me até apaziguar a hilaridade incontida, mergulhando nos detalhes da refeição requintada.

Era difícil, no entanto, suster aquela espécie de rumor. Visto de três quartos, uma pinta em forma de flecha luzia nos olhos do poeta laureado. Uma pinta acesa luzia. Ele chamou-me de novo para a intimidade da manga do seu casaco e disse-me – “Posso desmistificar uma coisa? E posso ser ordinário?” Sim, desmistificar podia, já quanto a ser ordinário duvidava que devesse. Ele não se importou. Nem ouviu. Espiou a desatenção dos outros elementos da mesa e disse – “Aquele homem que ali vê, está a dever os cabelos da cara e de outras regiões do corpo que não nomeio. Com sua licença, não nomeio, mas você entende... Entende ou não entende?” E os seus olhos fecharam-se sobre o prato. Ali já estava o peixe. Sobre o peixe, as alcaparras verdes. O vinho ainda era só branco, levemente afrutado, não muito. Ele bebeu-o dum trago e começou a dizer que estávamos ali, sentados como à mesa dum príncipe, e porventura o dono da casa, de seu, legitimamente seu, já não deveria ter nada. Naquele momento, talvez até aquela própria casa já estivesse comprometida, talvez aquelas paredes até já não lhe pertencessem, talvez aquelas loiças, talvez aquelas gravuras já fossem de alguém que não ele, que ali estava, inchado, presidindo à mesa das rosas. E num arroubo de poeta que tudo vê, através da luz das trevas, disse que levava à boca um garfo que já não era dele, do tanso, que aquele pedaço de peixe que lhes servia já não era dele, do tanso, o tanso servia aos outros o que não era dele. O próprio vinho da mesa, bem como todas as colheitas desde os inícios de noventa, hipotecadas, não lhe pertenciam. Dívidas e dívidas acumuladas, já nada era dele. Aí, levantou ao ar o copo de branco afrutado e disse para o lado, o meu lado – “Beber bem o que não é dele...” O poeta fechando e abrindo os olhos, bebendo do copo, agora, na direcção da mesa central, embora o fizesse sem exuberância, disfarçadamente, coisa só para nós os dois, ali à parte, no rebordo da mesa. O vizinho da esquerda nem de longe se aperceberia do que se passava à sua direita. Aliás, possivelmente, também não se passaria nada. Apenas eu ficava a saber o que todos os outros, por certo, já por demais saberiam. O poeta a sorrir, a rir, a falar baixo para mim, como se os dois em cumplicidade constituíssemos uma seita, e precisássemos preservar entre nós um segredo de iniciados. Por essa altura do jantar, a dona da casa, de costas para o poeta, levantou-se da mesa das calêndulas, e falando com este e aquele, dirigiu-se a cada uma das outras mesas. Dirigiu-se à mesa dos lírios.

Era o que eu adivinhava. Zili falou, colocando mesmo a mão sobre o ombro de um e outro convidado, mas não se dirigiu ao poeta, nem o poeta levantou os olhos para ela. Agora tinham colocado vinho tinto no quarto copo. Quando ela terminou a pequena gargalhada que resultava da troca de impressões rápidas sobre o andamento do jantar e abalou, bebeu-o duma golfada. O poeta laureado inclinou-se de novo para a sua direita e disse – “Casaram há vinte anos, estão para se divorciar há quinze, e agora já é tarde. Têm dois rapazes, dois peralvilhos. Percebe? Mas há dez, doze anos atrás, eram crianças maravilhosas, capazes de se adaptarem a qualquer cidade do mundo ... Sei que não pode compreender. Também não sei porque lhe estou a dizer isto, eu nem sei... ” Um vulto branco servia-nos borrego enrolado. Batatas pequenas, entaladas, feijão verde, meio cozido, como gostam os ingleses. Um molho castanho por cima, gengibrado. A Baía de Nápoles desenhada, em frente.

“Você percebe?” – perguntou o poeta.

Na verdade não percebia. A minha cabeça foi um pouco à frente e veio atrás. Imaginava um esquema simples, previsível. Que sabia eu? Anos antes, talvez aquele homem tivesse proposto à mulher daquele outro homem que saíssem do país para irem viver noutra cidade, como faziam os abastados no século dezanove, levando atrás de si as crianças e as arcas, e ela, Zili, havia sido tentada, mas havia dito que não, numa noite de luar. Como no tempo em que ainda se viajava de vapor e de comboio, um tempo antes do avião, antes do telefone, do morse, do satélite, do fax. Não, não podia ser. Talvez fosse só um sonho unilateral dele, e nada disso tivesse acontecido. Só desejo dele, só ambição dele, do poeta laureado, e ele estivesse ali a falar de alguma coisa vã como uma telha solta, descosida. Talvez o anfitrião nem devesse a mais pequena nota de mil, talvez nada estivesse hipotecado, talvez nada fosse verdade. Ali estava a casa ampla, sólida, murada a uma altura invisível mas palpável. Toda a gente a rir. Na mesa das calêndulas contavam-se piadas e uma mulher chorava de tanto rir. Impossível de acreditar naquilo. O grande problema dum poeta é trabalhar demasiado a metáfora, esquecer demasiado a intriga. Quer se queira quer não, a intriga existe nas vidas, mesmo nas dos poetas, ou talvez por isso mesmo, sobretudo no profundo coração dos poetas, e aquele ali estava a mistificar a parte que lhe pertencia. “Você percebe? Não percebe? Você não percebe nada...” – dizia ele, conivente, a rir. Depois, por instantes, o poeta laureado pôs-se mudo, entregue ao recinto do seu próprio prato de fio dourado, limitando-se ao estreito raio, aquele que passava entre os lírios, os copos e a borda redonda da mesa, e assim permaneceu, a cortar a carne e a cortar carne, sem a levar à boca, sorridente, sem falar. “Não come?” – perguntei ao poeta laureado. “Já vai, já vai...” E bebeu outro gole de vinho tinto, vermelho púrpura, colheita de noventa e quatro. Uma ligeira bolsa debaixo dos olhos, dava-lhe cinquenta e muitos anos. Ela deveria ter uns quarenta, não mais. Até parecia menos, digamos quarenta, já com o acrescento que se supunha que a maquilhagem lhe subtraía. De contrário, eu até diria vinte cinco, vinte e sete, ou trinta, indiferente até a idade que a anfitriã aparentava. Nele sim, no poeta, as marcas do tempo nos olhos e nos cabelos, aqui e ali, essas sim, eram claras. O poeta não iria dizer mais nada? Diga, diga, por favor, poeta .

Sim, o poeta diria.

Não demoraria muito. Ouviam-se falas e tinidos por toda a sala. E no meio de tudo isso, de novo ele foi obrigado a encostar-se na minha direcção, porque um vulto branco e preto colocava nos pratos dourados uma fatia de pudim, uma posta de gelado, e um outro braço, o da moça cariátide, atrás, unia tudo isso com uma colherada de chocolate quente. Quando os servidores passaram ele ainda ficou inclinado para o meu braço, as mangas quase juntas. Ele disse, nessa posição inclinada – “Aquele macacão, em vez de ter embarcado no Beagle e ter casado com a sua própria prima, encontrou a Zili, ficou com a Zili...” Depois, rodou de tal forma sobre o seu flanco direito que surgiu de frente – “Sabe? Talvez não saiba. No nosso país, poeta, só mesmo nas horas vagas. Eu sei do que falo. Compreende? Eu também sou o advogado deles...” Nesse instante, ouviu-se uma cadeira rojar pesadamente. Já tinham servido um Porto Vintage. Quinto copo. O dono da casa levantava-se. A sua gravata de seda era amarela e brilhava como topázio entre as abas do fato escuro. O dono da casa disse, com o seu copo na mão – “Todos os anos... Aqui nos encontramos... Por esta região e esta cidade, pela nossa determinação e nossa força... À saúde de todos os presentes...” E outras coisas assim, discurso de circunstância, sólido e barbudo como os alicerces da casa. Quando chegou ao fim do discurso, Zili virou-se para trás. Eu vi. O meu vizinho também se tinha levantado mas não erguia o cálice, tinha-o deixado pousado. Quando bateram palmas, ele hesitou, depois bateu. Por certo que havia circunstâncias que o obrigavam. Bateu pouco mas bateu, e voltou a levantar-se quando todos se levantaram e se dirigiram para a zona das janelas de baía onde se servia café e mais Porto. Bom Porto. E uísqui, bom uísquw.

Era um ambiente concertado, limpo, rico, aromático. Uma senhora de muito meia idade, inesperadamente com uma pele de raposa ao pescoço, quatro olhinhos de raposa a luzirem no seu peito, disse – “Zili, canta lá para nós, esta noite, canta...” Zili hesitava. Havia quem nem parecesse entusiasmado, depois de tão prolongado jantar. Ou possivelmente, já todos conheceriam a actuação de Zili. Fosse como fosse, ela passou os olhos pelo rosto do poeta laureado, colocado junto ao sofá das orelhas grandes. O marido, o dono da casa, disse – “Querida, faz lá a vontade à Srª D.ª Perpétua...” A anfitriã olhou de novo na direcção da janela de baía onde nós dois, uma seita de dois, nos encontrávamos, e condescendeu – “Então pronto, de Wolf Ferrari, Quando a letto...” E colocando-se num canto, como se fosse só para alguns, para muito poucos, soltou-se dos pratos, das pratas, das rendas e dos estuques, fechou os olhos e começou a fazer soprano, apenas imitação de soprano, mas suficientemente soprano para que todos se calassem e caminhassem nos bicos dos pés para vir ouvir Zili cantar “Quando a letto vo’ la sera...” Uma voz com educação mas sem treino, mediana potência, e no entanto com um pedaço de alma, uma alma pousada nas coisas daquela casa que segundo o poeta já não eram nem dele nem dela, ou eram, mas se eram, na verdade, alguma coisa profunda e essencial lhes escapava como no fumo, a essência. A voz de Zili, ligeiramente trémula, esfumada, era bela ali naquele momento e lugar – “Vo’ la sera, vo’ la sera ...” Cantava ela. No sofá de orelhas, o poeta mantinha-se sentado, sem se mexer, imóvel como um saco de farinha. Quando Zili foi aclamada com a condescendência entusiástica que se dá aos amadores e às crianças, ou às prendadas donas de casa – “Encore, Zili, encore...” - ele bateu as palmas de novo, mas moderadamente. As duas mãos bateram clape clape e depois caíram sobre os joelhos. Quando abalei, ainda ele ali estava, no vão da janela bay window, a olhar. No exterior, a partir da rua estreita, das portas quadrangulares, ninguém diria. Ninguém que viesse de fora, alguma vez diria. Ninguém.
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* Publicado em "Porto Ficção", (ASA Editores, 2001)
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