domingo, 1 de agosto de 2010

Depoimento * Ali dentro o mundo é outro

Como escrevo

Lídia Jorge *

Como se escreve é muito diferente de como se gostaria de escrever. Sonho com um espaço ideal. Um quarto de hotel, uma mesa bem iluminada, um bloco de papel, um computador portátil. Ninguém sabe que me encontro por ali. Os telefones não tocam, a refeição é tomada no primeiro andar. Pode chover lá fora, fazer vento ou fazer sol, ali dentro o mundo é outro. Posso mesmo nem olhar para o tempo que faz lá fora. O que interessa é a paisagem que está invisível. As figuras estão dentro da cabeça que são muitas, não é preciso que alguém apareça. Se a empregada quiser arrumar o quarto, eu vou pedir que fique para outro dia. Nada de música, nada de ruído. Mesmo o aspirador, tão necessário, pode ir sorver poeira para outro lado.

Então, agora, sim. Primeiro no papel, que pode ser o bloco do hotel ou um caderno qualquer. O que é necessário é que seja uma folha em branco. Ali estão as primeiras linhas, um primeiro esboço, os primeiros nomes. Duas ou três experiências, duas ou três hipóteses de abertura. Coisa assim – “O restaurante floresceu quando o cozinheiro começou a servir gato…” Ou assim - “ Quando os gatos das redondezas começaram a desaparecer ninguém deu por nada…” É preciso compreender as diferenças, imaginar as implicações. Primeiro o desaparecimento dos animais, ou devo eu metê-los de imediato dentro do prato? Deve-se tentar primeiro de uma forma, depois de outra. Tudo isto se passa entre a cabeça e o papel. Tentativa para aqui, tentativa para ali. Muitos riscos. Quando a sintaxe começa a ter alguma estrutura, é o momento de abrir o computador, engatá-lo à corrente, abrir um arquivo, atribuir-lhe um nome, dar um título ao conto, e recomeçar a vida. Aquela vida. Desta vez, calhou ser um restaurante que servia gato em vez de coelho. Mas não conto o desfecho. Meia noite em ponto. Ainda estará alguém, lá em baixo, no bar do hotel, que sirva uma sanduíche ou um bolo? Se a coisa correu bem, uma taça de champanhe?
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* Publicado na revista Time Out (1 de agosto de 2010)

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