domingo, 6 de junho de 2010

Depoimento * Moeda de oiro que a pintura pode dar

Armanda Pássaros

Lídia Jorge *

Segundo a pintura de Armanda Passos, o Mundo é um pássaro.

Na ordem natural das espécies, o pássaro descende do réptil e antecede o mamífero. De entre os mamíferos, segundo as lendas, num dia iluminado por um lindo relâmpago azul, nascemos nós. Teremos sido nós, então, movidos por essa outra luz, quem nomeou o céu, a terra e todas as coisas que nos cercam. E entre elas, o pássaro, porque voa, foi nomeado como o nosso parente mais próximo, emprestando a sua forma ao anjo. Bela invenção. Ela significa que, para nos sentirmos honrados com a nossa condição, precisamos de encontrar um lugar imaterial para o nosso nascimento. Significa que nos recusamos a entroncar-nos na linha directa da sucessão dos animais.

Mas os artistas mergulham com naturalidade nesse lugar onde fomos tudo e somos ainda a amostra de todas as coisas. Os grandes artistas não têm medo de enfrentar o lugar da carne antiga, da cabeça com vários olhos, ou o resto da nossa língua bífida, nem evitam o diálogo com os habitantes da lama e os habitantes das árvores. Os artistas sabem ir ao encontro desse terror e ao mesmo tempo dessa sublimação que nos faz pertencer a uma outra totalidade. O grande artista diz aos outros – Vejam como eu, todas as noites, me encontro com o impronunciável. Convido-vos a vir também. Foi essa viagem que, durante vários anos, eu aceitei fazer através de um quadro da Armanda Passos.

Era apenas um bando de pássaros que me levava para esse lugar onde as coisas estremecem. E era bom. O poético, no dizer de Arthur Koestler é o olhar que decompõe a realidade nos seus fragmentos, de modo a mostrar as arestas do original. Por isso mesmo o poético corresponde à interrogação que se faz depois das grandes surpresas, as grandes alegrias ou as grandes catástrofes. Era esse olhar poético que me dava o seu quadro, e alguma coisa estremecia, a partir do local onde se encontrava o quadro da Armanda Passos.

Não sei que lugar ocupará na História de Arte a obra de Armanda Passos, pois a História de todas as coisas parece ser agora um círculo em que tudo é mostrado e visto em simultâneo, a maior parte das vezes, sem uma única legenda. Não sei o que o futuro dirá. Sei apenas o seu contrário. Que as figuras de Armanda Passos contam uma viagem aérea que vale a pena manter por perto. Esta pintora tem o dom do desenho, da cor, da interpretação, e o supremo dom da transfiguração, uma integridade absoluta como acontece com os grandes criadores. Não sei o que a História de Arte dirá. Sei que vale a pena ter as suas representações por perto para embelezar o nosso quotidiano e não sermos pessoas banais. Armanda Passos pertence à galeria dos artistas que escrevem a sua própria e inconfundível arte poética. E isso, para os atentos, é a mais importante das moedas de oiro que a pintura pode dar.
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* Texto para catálogo da pintora (6 de junho de 2010)
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