quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Crónica * Carta a uma filha

Figos & rosas

Lídia Jorge *

Querida Catarina

Mal chegaste, partiste, e mal partiste já só penso no teu regresso.

Desta vez, tudo aconteceu tão rápido que nem deu para visitarmos o pomar. Pergunto-me o que sentirão as tuas árvores, se perceberam que não as visitaste como antes sempre acontecia. As amendoeiras que tu tanto gostavas de desenhar antes de perderem a folha, ainda cá estão intactas como se esperassem pelo teu lápis. As alfarrobeiras estão carregadas como nunca, e nenhuma delas até agora se partiu. Foi pena que não tivesses reparado nelas. E que dizer das figueiras? Ah! As figueiras-leiteiras, como se cobriram de frutos. É caso para dizer que por aqui, a mesa de Deus está posta. Mas tu, mal chegaste, partiste e não viste o que Deus pôs na nossa terra. Desta vez não nos levantámos de madrugada para irmos aos figos - passarinhos. Aquela a que tu chamavas a tua figueira, a carvalhal, este ano, precisamente, carregou. É dela a maior parte da cesta que estou a preparar para ti. Sei que não precisas, que poucas serão as ocasiões em que estes frutos secos, com cheiro a mel e álcool tresmalhado, de bafo demasiado quente, demasiado calórico, como tu dizes, poderão servir-te, mas eu é que acordo de noite com este aroma em casa, vindo do pátio, onde ficam estendidos, e sinto uma abundância mais que humana e preciso de partilhar contigo, que mal chegaste logo partiste, e eu já só penso no teu regresso dentro de um ano, bem entendido, se for caso disso. Recebe, pois, a seira que te mando envolta em papel pardo. Se sentires um pouco de cheiro de canela, não acredites, são eles mesmos que assim cheiram. De resto, tu conheces como os mantenho – deixei secá-los até ficarem com aspecto de torrados, untei-os com azeite, coloquei um bago de erva-doce em cada olho, um molho de funcho por camada. Tudo isto para durarem um ano, ou ainda mais. Desta vez, não tiveste tempo, mal partiste, chegaste, mal chegaste, logo partiste, já só penso no teu regresso, de noite, abro as janelas, e já só penso que chegaste. Não faças caso. Junto, vão também seis botões da roseira adamascena. Pois andaste pelo jardim, e não a viste, não a desenhaste como é teu hábito, desta vez foi como se não tivesses estado em Portugal. Mal chegaste, mal partiste. Mal chegaste. Segue tudo Via Expresso para mais rápido te alcançar. Segue tudo, menos esta carta, que aqui ficará guardada, para seres livre de partir, para seres livre de chegar.

Mãe
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* Crónica escrita em agosto de 2009,
publicada em revista (a ser localizada)
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