sábado, 27 de agosto de 2011

Originais * Mensagem, vai

A mais longa viagem


Lídia Jorge *

Vai, garrafinha, vai e não voltes mais. Tudo o que sabemos
não encontrámos, escavámos. Tudo o que não sabemos, desejámos
e não temos, e o que não viajámos,
não foi por não sonharmos, foi por não podermos.
Das garrafas que enviámos, salvou-nos o pedido que fizemos.
A mensagem que escrevemos
sempre teve menos letras do que aquelas que cantámos
e o amor, que nela imaginámos, sempre foi mais longe do que os beijos
que tivemos. Por isso, vai garrafinha, entrega-te na mão do achador
e não lhe contes nada, nem da imperfeita vida desta praia,
nem do nosso coração, um grão de sangue pulando desencontrado, para
que possa imaginar que a garrafa caiu da algibeira
de um deus adormecido e tem a poção mágica
da viagem. Vai, assim, toda de vidro, fulgurante, iletra, transparente,
e a  imaginação de tudo preencher, que lhe seja
o motor de uma outra realidade onde não exista
diferença entre o ouro e a areia, o pertencido e a pertença.

Certa vez, eu estava sentada na praia do Macuti, na Beira, Moçambique quando reparei que as ondas traziam uma garrafa. Vinha rolhada, como se ninguém a tivesse aberto, mas lá dentro não trazia nada. Foi essa ausência de líquido que me chamou a atenção. Na altura, havia bidões de álcool metílico que davam à costa, dando origem a uma catástrofe sanitária muito especial. Por certo que esses dois factos não estavam relacionados, mas na minha ideia passaram a estar unidos. Foi assim que, decorridos alguns anos, eu escrevi “A Costa dos Murmúrios”. Afinal, dentro da garrafa que não trazia nada, vinha um livro. Antes do livro, vinha um mundo.

O texto que escrevi baseia-se nesse pressuposto. A ideia de que a imagem da garrafa que é deitada à água para levar para longe uma mensagem, só por si, é a mensagem. Nós queremos enviar um recado a alguém cuja mão misteriosa inventamos. Precisamos dessa invenção para nós mesmos criáramos a nossa fantasia. Na base dessa fantasia existe um desejo de comunicação com o belo, o imenso, o puro e o limpo que imaginamos existir na silhueta de uma pessoa ou de um grupo que avista a nossa garrafa e decifra a nossa mensagem. Mas no tempo em que o chip, que veio da sílica, da areia, substitui a viagem por mar pela navegação instantânea, a ideia de atirar uma garrafa ao mar não passará de uma imagem romântica selada na imaginação daqueles que ainda nasceram no século XX. Seja como for, enviar uma garrafa com a nossa assinatura continua a ser uma forma de sobrevivência do poder do sonho. Um símbolo que permanece no écran, tão fundador quanto o barco, a vela, ou outro qualquer objecto de deslocação no espaço. A tecnologia avança, mas as imagens fundadoras permanecem.
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* Publicado no Expresso | Única (23 de julho de 2011)
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