quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Depoimento * Permanente exercício de translação

A perspectiva da maga

Lídia Jorge *

Para Agustina-Bessa Luís, o contraditório é o chão do pensamento. Quem não entender essa sua raiz profunda terá dificuldade em compreender a obra que produziu, o vínculo que estabelece com o mundo, com os livros, e até mesmo o tipo de relação que mantém com os colegas de quem é contemporânea. A obra aí está para o ilustrar – Ler Agustina é mergulhar num mundo de virtuosismo entre pensamento e ficção, destrinça entre instinto e alma, discurso cujos contornos podem assentar no histórico ou no jornalístico, mas o nuclear sempre se constrói rente ao humano individual, no que ele tem de insondável e nele se constitui como fonte de surpresa. A surpresa que Agustina faz falar através da análise da ambivalência humana, onde se jogam as oposições que formam o universo da interioridade. O mesmo é dizer que imaginar a Literatura do século XX sem a obra de Agustina, seria amputá-la da sua fatia mais densamente dramática.

Mas se se quiser entrar no domínio da escrita produzida por mulheres - particularidade que continua a fazer sentido - nela se encontra uma espécie de sublevação em relação àquilo que, em geral, é o estereótipo feminino, fundamentado num contraditório ainda mais radical.

À primeira vista, Agustina sempre escreveu para além do ressentimento, já que parece ter impregnado as figuras de mulher daquele carácter a que comummente se chama de viril, e eu chamaria apenas de vencedoras no plano da representação, por compensação da perda no plano do real. A frase de Nietzsche que ela tão subtilmente manobrou em Um Cão que Sonha – Se fores ver a mulher leva o chicote- sob os seus dedos, muda de mão, e o cabo desse instrumento confunde-se com a caneta que empunha, para com ela vergastar a fragilidade do homem. Mas não é fácil em Agustina encontrar algum campo de leitura linear, directa, e muito menos pacífica. Para os espíritos mais convencionais, Agustina promove surpresas espantosas, colocando-se no lugar de onde a mulher vergasta a mulher, depreciando-a. Pois não é raro Agustina falar da mulher como um ser sem causa, um ser desempregado de ambição, uma alma vaga, deambulando ao sabor do acaso e do apelo, uma criança grande acomodada a um eterno segundo lugar.

Surpresa? Contradição? De modo algum – Apenas um permanente exercício de translação. Pois lá onde Agustina parece estar, não está. Apenas ali se encontra a sublevar os espíritos, essa acção superior que atribui à escrita e à conversação, e para a qual sempre está necessitando de novos espaços para mudar de mira. Qualquer dialogante desprevenido, diante de Agustina, pode sentir-se de facto mais conforme com aquilo que a modernidade espera de cada um de nós, mas a autora de “Os Incuráveis” é sempre moderna porque se coloca fora da dualidade presente/passado, e bem vistas as coisas, fora da dualidade homem/mulher. Agustina vê-se a si mesma numa perspectiva de futuro, e escreve e fala na perspectiva da maga. O molde que encontrou para esse salto fora do tempo e do género, nos livros, foi a sentença e a epígrafe. Na discussão, foi a exploração do adverso, isto é, da contradição revestida do irónico, e até do irónico prazenteiro. Porque Agustina, como se lhe reconhece, sabe rir do mundo como ninguém. Como poucos, ri de todos, e entre todos - ao contrário do processo usado por muitos - ela mesma, lá não está.
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* Publicado na Revista Ler, janeiro de 2009
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