terça-feira, 11 de julho de 2006

Intervenção * Portugal e América Latina

Uma história de periferia


Lídia Jorge *

Convidou-me o Sr. Dr. Carmelo Rosa para que dissesse umas palavras por esta ocasião. Faço-o com muito gosto, e aproveito o momento para vos saudar e desejar que tenham uma boa experiência em Portugal e na Europa. Por mim, ao falar para estudantes provenientes sobretudo da América Latina, gostaria que soubessem que o faço como se fosse uma conversa em família. Não é em vão que a minha única irmã é sul-americana. O meu único sobrinho é sul-americano. Não é em vão que os meus parentes mais próximos se dividem principalmente por estes dois continentes. Permitam-me, pois, que vos fale de forma simples, como se este encontro fosse um serão, embora sobre uma matéria tão inesgotável quanto é o rosto dum país. O rosto do nosso país, que à semelhança do que se passa com o nosso corpo, sempre desconhecemos por mais que o queiramos analisar. Como se sabe, a consciência que temos de nós mesmos só existe com alguma lucidez quando reflectida no olhar dos outros. E para isso, nada melhor do que irmos ao espelho dos nossos outros especiais, aqueles que são os nossos vizinhos, para percebermos as feições da nossa própria cara. Não o nego - Digo-vos isto e estou a pensar em certa Antologia de Poetas Portugueses publicada em Madrid, em meados dos anos oitenta, à qual o seu antologiador, Ángel Campos Pâmpano então deu o nome de Los Nombres de la Mar.

Curioso que em Espanha os poetas portugueses do século XX possam ser considerados como Los Nombres de la Mar - hombres e mujeres de la Mar- quando Espanha também foi um país de mar, e continua a ser o que é possível ser hoje em dia, tal como nós, um país de questiúncula costeira e pescaria. Trata-se, pois, duma metáfora. Mas mesmo sabendo que os títulos não passam de metáforas, de qualquer modo, de tão honroso que é, aquela forma de designar leva-nos a pensar sobre o que poderá haver nele de usurpação dos outros – E os gregos? E os italianos? E os irlandeses? E os alemães da Liga Hanseática, e os ingleses, não terão eles por direito próprio Nombres de la Mar? E na América do Sul? Quantos são os países que não têm uma boa história marítima? Os argentinos, por exemplo, não se designam a si mesmos, como aqueles que vieram do mar? Naturalmente que se trata duma condescendência poética, uma tomada da parte pelo todo, um enfeite de linguagem. Uma questão de simplificação. E no entanto, quem conhece um pouco da cultura portuguesa, sabe que há razões legítimas que abonam em favor daquele belo título. É que deve ser difícil encontrar um país da era moderna em que o elemento do mar tenha sido tão determinante na marcha da sua História, e a circunstância geográfica tenha sido tão totalitária na construção do seu carácter.

Na verdade, para os portugueses, assumir que ao longo dos séculos se transformaram em Nomes do Mar, não significou apenas conviver, viver, presenciar, usar e cruzar o mar. Significou muito mais do que isso, significou sobretudo o seu oponente, um limite, uma fronteira real e concreta que a todo o momento foi necessário destronar para sobreviver. A história do nosso início é medieval e às crianças até se conta em poucas palavras. Consta que no início do século XII, um príncipe vivaço que vivia aqui a Norte, paredes meias com a Galiza, se revoltou contra a mãe, e contra o primo de quem era vassalo, e depois de muitas espadeiradas, a si mesmo se coroou rei e veio por aí a abaixo conquistando praças aos habitantes locais, que eram muçulmanos. A esse movimento se chamou Reconquista e por ele ganhou o direito de ser considerado um bom cristão. Com o devido respeito, a partir de então, estava encontrado o rei duma fatia de terra pobre e estreita à beira do Atlântico, neste canto da Península. Na diversidade do xadrez ibérico que se conhece, ainda hoje tão vivo e tão autonómico, esta separação iria ficar marcada para sempre como a marca genética da nossa independência. Sem outros comentários, assim se percebe, olhando o mapa de hoje, invariável desde há oito séculos, que esta nação, a mais antiga da Europa, tenha tido a necessidade permanente de destronar o seu isolamento. É como se este país fosse uma ilha com quatro costas – duas marítimas viradas ao Atlântico e outras duas, terrestres, viradas ao Continente Europeu. Uma velha história de espadas apontadas. Pequeno, estreito, Portugal funcionou ao longo da História como um ouriço-caixeiro defensivo. Nos momentos de dificuldade, fechou-se sobre si e ofereceu aos vizinhos, as costas com os espinhos. Em termos de identidade e independência, chapeau! Venceu. E assim se percebe também o sentimento de compulsão para atravessar o Atlântico, e em parte assim se explica também que no século XV e XVI Portugal tenha tido uma expansão surpreendente, da qual resultou o célebre Império Ultramarino que ainda hoje, trinta anos depois da Revolução, ainda eleva e ainda embaraça. Ou por outras palavras, talvez a história da expansão portuguesa através do mar, que nós próprios ainda hoje celebramos, e uma boa parte do Mundo também, tenha sido apenas a vitória duma população escassa, numa terra estreita, contra o seu estado de periferia. E talvez o estado em que nos encontramos hoje, libertos finalmente dos pesadelos imperiais, e ainda à procura de um caminho de progresso, tenha a ver de novo com esta situação geográfica da qual tiramos o proveito sobretudo, do bom sol e das praias.

Claro que toda a explicação é uma amputação da realidade. Quando a explicação assenta na superfície ficamos perante clichés. A presença do mar oferece todas as explicações mas também o seu abuso. Um dos principais abusos consiste na ligação totalitária que muitas vezes é feita entre esta relação com o mar e o temperamento dominante dos portugueses. Um dos clichés correntes descreve os portugueses como gente de comportamento sóbrio, por vezes demasiado humilde, ou até raivosamente submisso. Se olharem à volta, até verão que existe razão para isso. Mas se ouvirem dizer que isto é fruto da nossa relação com o mar, acreditem se quiserem. A ideia mais divulgada é que esse sentimento de gravidade de que nos caracterizaria viria da noção de que ao longo da História fomos gente de proezas, não pessoas para empresas. Uma herança por certo que nos faria descendentes dos inqualificáveis marinheiros. Como dizia Anarcasis – “Há três espécies de homens, os vivos, os mortos e os que andam no mar”. Ainda aí, a nossa ousadia eufórica, seguida de depressão, viria do mar. Muito romântico, não sei se válido.

Por vezes o totalitarismo desta ligação estende-se até à morfologia da nossa própria Língua. O mar não explicaria mas pelo menos o seu convívio poderia ser um dos ingredientes que implicaria a nossa melodia verbal, cuja forma mais perto da origem os brasileiros conservam. Sobre essa matéria, Cervantes, amigo dos portugueses, escreveu que a língua portuguesa era o castelhano sem ossos. Ao que alguns portugueses românticos têm respondido que é uma língua que segue a ondulação gutural do mar. Clichés no plano simbólico, para nos rirmos de nós mesmos, o que é saudável. Em tom mais sério, o grande escritor Vergílio Ferreira escreveu uma frase memorável para qualquer português. Parodiando uma velha canção que dizia alguma coisa como “da minha janela/ virada para o mar”, Vergílio Ferreira fez essa síntese admirável que vale por milhares de canções - “Da Minha Língua Vê-se o Mar”. Esse escritor sabia que não se poderia jamais associar o som das nossas palavras a uma origem marítima, que seria ridículo fazê-lo, mas de forma diversa sabia como o léxico está cheio de expressões de marinhagem e como a narrativa do nosso mundo é, na sua maior extensão, uma narrativa sobre a nossa luta com o destino do mar. Parte da nossa estrutura semântica tem origem no combate permanente com essa fronteira da água.

Aliás, do nosso isolamento - e ilhamento - provêm também raivosos clichés que tanto atraem os turistas, embora a nós mesmos tanto nos desesperem – A ideia de que se trata de um país cuja canção nacional é o Fado, e cujo sentimento dominante é a Saudade. Clichés raivosos, digo. Porque a ideia monolítica que se faz passar, e nós consentimos e até estimulamos, é essa mesma – a duma expressão de imobilidade nostálgica ligada ao mar. Morrer longe, morrer de amor e de distância marítima. Obedecer ao destino, gostar de sofrer de forma parada, seria coisa própria dos portugueses, e tudo isso ligado ao Fado. No exterior, até ainda hoje essa imagem estática resulta bastante eloquente, quando se compara, por exemplo, a vitalidade do flamenco espanhol ou a coreografia vibrante do tango argentino com a aparente imobilidade do fado. A propósito, recordo aquilo que sobre a grande cantora de Fado, Amália Rodrigues, diziam os responsáveis do Olympia, em Paris. Ela aí esteve com grade sucesso, em 1987. Mas consta que durante muito tempo recusaram-na, temendo que o seu espectáculo fosse um desastre. Descreviam assim a sua actuação – O que vamos fazer com uma mulher toda vestida de preto, de olhos fechados, durante duas hora, no meio do palco, sem se mexer? – Claro que fizeram grandes coisas, felizmente, já que a vitalidade que dela emanava era de outra ordem coreográfica. E felizmente que hoje em dia o Fado está salvo porque entrou na onda da World Music e as fadistas portuguesas vestem de todas as cores. E felizmente também, que a dinâmica da modernidade encontra entre nós outros parâmetros alternativos.

Aliás, falando da nossa imagem no Mundo, talvez valha a pena relacionar o factor marítimo, e a estreiteza da terra portuguesa, com o tipo de ocupação costeira das terras por onde andaram. O que sempre se refere é o facto de terem sido meia dúzia de gatos pingados, por vezes gatos pingados bastante ferozes e rapaces, que fizeram o antigo Império Português. A população de Portugal não chegaria a três milhões, em meados do Século XVI. Mas talvez não seja errado acrescentar que os portugueses, comerciantes como os levantinos, criadores de feitorias, terão levado consigo o seu vício de ficar pela periferia. Com as excepções que se conhece, não tinham a experiência das invasões dos grandes espaços continentais. Simplificando, o Interland não é uma criação sua, nem a palavra que o traduz é sua sequer. Vale a pena lembrar a forma curiosa como Portugal perdeu o que em 1890 considerava um direito seu. Como se sabe, o Mundo sempre foi assim, sempre andou a ser dividido à força. Pois bem, nessa altura, as potências coloniais europeias desenhavam a seu bel prazer a configuração dos países de África. Nesse contexto, conforme a Conferência de Berlim, se Portugal provasse que tinha ocupado a zona africana entre Angola e Moçambique, poderia unir a Costa Ocidental de África à Costa Oriental. Ao projecto dessa união, que faria de Portugal o grande dono da África equatorial, chamámos o Mapa-Cor-de Rosa. Mas havia que provar essa ocupação. E claro que não poderia provar, nem a Inglaterra da Rainha Vitória permitiu que provasse. Pelo contrário, foi criado por inspiração sua, e consentimento de muitos, o Reino do Congo. E foi feito um Ultimatum a Portugal. Os ingleses, nossos velhos aliados, transformavam-se assim nos grandes inimigos. O Hino Nacional português foi criado nesses dias de raiva contra a Grã-Bretanha. Um dos versos do refrão cantava Contra os Bretões, marchar, marchar…. Com o passar do tempo, acabámos por fazer as pazes com os ingleses, e agora, volvidos todos estes anos, fizemos desaparecer a palavra bretões, e cantamos nos estádios de futebol alguma coisa muito mais suave. Cantamos apenas Contra os canhões, marchar, marchar. Mas por certo que os rapazes de Manchester United ou do Chelsea, e até mesmo os nossos jogadores quando o cantam nos relvados, estarão bem longe de saber o que outrora se queria gritar ao Mundo, com este hino que começa pelas palavras épicas de Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal! Claro que estamos a falar de uma história de raiva e de vingança colonial. Felizmente que hoje em dia ficámos inocentes dessa história da ocupação costeira portuguesa, esse vício antigo da periferia.

Uma forma de ser que se prolongou até bem tarde . Quando em 1961 os Movimentos Independentistas desencadearam as primeiras ofensivas nas ex-colónias de África, nesses terrenos quase não havia estradas, nem hospitais, nem universidades. Os povos colonizados pelos portugueses têm razões de queixa, sim, têm . Nos Estados Unidos, quando se procura a génese das comunidades, lá encontramos no núcleo fundador de cada cidade, uma Escola, uma Universidade, um Tribunal, um Hospital, um Banco, um Quartel e uma Igreja. Nos territórios colonizados pelos portugueses, encontramos sobretudo, a Igreja e o Forte, sós e unidos. No seu interior, estava em estado de embrião tudo o resto que faltava - a escola, a universidade, o tribunal, o hospital e o banco. A Democracia e a Liberdade vieram tarde para nós, e os países que provieram da nossa descolonização também têm muito tempos e atraso. Ainda que infelizmente, durante os últimos anos, o Novo Mundo se tenha encarregado, em África, de nivelar tudo por baixo, o mais raso possível. Mas nem tudo é pobre. Como dizia o General Spínola, um general português que na década de setenta compreendeu os tempos do futuro, a diferença entre a colonização portuguesa e a inglesa, resumia-se no seguinte contraste – Perante os povos colonizados, os ingleses disseram, eleva-te, mas não te aproximes. Os portugueses disseram, aproxima-te, mas não te eleves.

Claro que hoje em dia, quanto mais conscientes somos das nossas Histórias, mais livres somos das nossas heranças e mais soltos ficamos para um novo convívio entre nações.

Não nego que encontro na troca da Literatura, das Artes e das Ciências, a melhor forma de nos encontrarmos. Não nego que em termos artísticos, em termos de entendimento entre povos, privilegio as literaturas nacionais como os grandes rostos e os grandes espelhos onde nos miramos uns aos outros e nos damos a conhecer. Volto a Los Nombres de la Mar, e é um orgulho perceber que um poeta do Século XX, português, Fernando Pessoa, entendeu como nenhum outro nesse século, o que foi o movimento de travessia que fez a expansão da Europa, que ao mesmo tempo aproximou os povos, e os tornou vizinhos, e ao mesmo tempo criou cartilhas de domínio de uns sobre os outros, cujas feridas não só não estão saradas, como desde o 11 de Setembro de 2001, a cada dia que passa, mais se abrem. Mas como disse, é uma honra para nós ter sido escrita em português a Ode Marítima, esse poema sobre os caminhos das almas do mar, o poema da grande pirataria universal, irmã gémea da navegação. É reconfortante saber que em Portugal existe um poeta que compreendeu a natureza do ser humano como ser anfíbio, homem e mulher em simultâneo, o pirata. É talvez o maior grande poema do século vinte. Está traduzido em todas as línguas cultas. A dada altura, neste poema escrito em 1917 , pode ler-se sobre a identificação do europeu com todos os homens de mar e todos os mares :

“Quero ir convosco, quero ir convosco
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr’onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em Mares do Sul
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir convosco, despir de mim – ah! Põe-te daqui para fora!-
O meu traje de civilizado, a minha brandura de acções,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!


No mar, no mar, no mar, no mar
Eh! Pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de água chicoteando as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!”

É um poema de vinte e oito páginas em caracteres miudinhos. Poupo-vos na esperança de que um dia voltem aqui e encontrem aquela beleza superior que olha para cima, mas quando olha em frente, conduz à compaixão. Espero também que esteja bem traduzido para que não o sintam português mas de toda a Humanidade.

Claro que entretanto nos tornámos menos épicos e menos líricos. Menos míticos. Estamos a braços com um novo rosto. Há trinta anos, depois da Revolução, ficámos reduzidos às fronteiras encontradas pelo antigo príncipe, aquele que guerreou a mãe e o primo e a si mesmo se fez rei, mas fizemos uma rotação de cento e oitenta graus na direcção dos novos vizinhos. Aqui estamos ensaiando uma nova forma de existência. Lentamente, o Mar está sendo para nós, hoje em dia, uma outra realidade. Ali em baixo, no Cais de Alcântara, no Cais da Rocha, em Lisboa, poderão ver locais de onde há pouco mais de trinta anos saíam navios carregados de soldados para manterem esse velho Império Colonial. Era o sítio do nosso páthos nacional. Agora, se por lá passarem, encontrarão os velhos armazéns transformados em restaurantes e bares. Os meus filhos, que são da vossa idade, não sabem o que ali se passou. Felizmente. O mundo é outro.

Que mais vos posso dizer? - Que se forem pelas ruas de Lisboa encontrarão uma gente que ainda não é europeia, ainda não é sofisticada, ou como o escritor espanhol Enrique Villa -Matas dizia, ainda há aqui uma bondade antiga. Espero que também exista uma bondade moderna que vos receba bem.

Sobre esta charla familiar não tenho ilusões, ela não vos explicou nada. Quando se viaja inteiramo-nos sobre a História dos países, a sua Política, a sua Religião, a sua Arte , a sua Literatura, a sua Ciência. Visitamos museus, monumentos e outros lugares assim. Mas é sempre o riso do empregado que serve os cafés na esplanada, aquilo que de regresso levamos ou não levamos no nosso coração.
__________________

* Reconstituição (validada)
a partir de uma exposição dirigida a Bolseiros Sul-Americanos
de visita a Portugal, 
na Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 11 de julho de 2006
Tire uma cópia

Sem comentários :

Enviar um comentário