sexta-feira, 5 de maio de 2006

Intervenção * Na entrega do Prémio Albatroz

Narrativa que convém
ao Mundo
Lídia Jorge *

Este é um momento de grande alegria na minha vida. Contidos nele, estão a minha Tradutora, os meus Editores da Suhrkamp Verlag, a minha Agente, Ray-Güde Mertin, a Fundação Günter Grass e os leitores especiais que integraram este Júri e que escolheram, para ilustrar um prémio que contempla obras literárias aliadas à expressão do livre pensamento, um conjunto de livros de ficção dos quais o último é precisamente um romance sobre uma figura que não sabe falar. Obrigada. Este é um momento inesquecível – À volta desta mesa, juntamo-nos mais uma vez em torno da Literatura, para partilhar uma refeição cujo pão é o da beleza e da liberdade.

Na verdade, independentemente de me ter sido atribuído, toca-me de modo muito particular que nesta primeira edição do Prémio Albatroz, o romance tenha sido escolhido.

A propósito deste género, não posso deixar de invocar aquele dia em que um antigo companheiro de escrita, o grande ensaísta e romancista português, Vergílio Ferreira, me chamou a sua casa para comentar o manuscrito do meu primeiro livro, que por acaso lhe tinha chegado às mãos, e me falou com grande entusiasmo, da falência do romance.

Era um dia de Verão, ele estava descalço, sentado numa poltrona e tinha sobre os joelhos o monte de folhas soltas que eram, então, “O Dia dos Prodígios”. Folheando-as, com a lentidão dum mestre, perguntou-me – “Por que razão você quer escrever romances se é um género que está a acabar? Você chega demasiado tarde... ” E a seguir, durante uma hora, esgrimiu todos os argumentos que se podem aduzir contra o romance – O argumento da lentidão no tempo da rapidez, o argumento de que o romance reproduz os actos banais da vida, quando a Arte Moderna careceria, sobretudo, da sua interpretação, ou o argumento de que o peso das fábulas descritas no romance seria inútil, quando se tornava urgente a síntese do pensamento. Na sua ideia, o romance, tal como o Romantismo Alemão e Inglês o tinham delineado, havia cumprido dois séculos, já tinha desempenhado o seu papel. O ciclo estava fechado. A Europa o tinha criado, a Europa o estava enterrando.
E a esses argumentos Vergílio Ferreira juntava outros, saídos da evidência dos sintomas. Em sua opinião, a prova de que o romance estava a definhar era o facto de se assistir à sua explosão em quantidade incontrolável, como a multiplicação das bactérias que fazem parte da infecção. Mas sobretudo, note-se, o facto de as mulheres terem chegado em força ao território do romance. A sua ideia era de que nós, as mulheres, tendo sido afastadas tradicionalmente dos campos da luta pela honra e pelo dever, traríamos ao género a sua degradação e vilipêndio. Era um encanto ouvir falar aquele que viria a ser o meu grande amigo nas Letras. Para o contradizer, nessa altura, eu não tinha argumentos, só tinha instintos. Devo dizer que depois desse encontro inaugural, ainda vivemos na mesma avenida durante mais dezasseis anos, e que ao longo desse tempo, esse extraordinário escritor que tanto se bateu no plano das ideias pela demonstração da morte do género, para além de na altura já ter publicado treze títulos, depois dessa data, viria ainda a publicar mais cinco, de entre os quais três são obras primas do romance europeu. Que morreu com um romance pronto a sair para as livrarias, e a última vez que nos encontrámos, falou-me de um novo projecto que tencionava começar a escrever em breve. Partiu da sua poltrona, escrevendo romance. Devo-lhe muito, mas não há dúvida de que aquilo que mais lhe devo é esta metáfora sobre a vitalidade deste género no seio das sociedades contemporâneas, como forma de representação do Mundo.

Esta é pelo menos a minha convicção. Se ela corresponde a uma interpretação defeituosa da realidade, estou no seu interior, sou uma suspeita. Não nego que pertenço àquele tipo de pessoas que se lhe perguntam o que pensam, respondem – “Era uma vez uma mulher que vestiu um vestido azul e se pôs a pensar…” E tudo o que se relaciona com o pensamento transforma-se em acção a decorrer em espaços onde coisas materiais acontecem.

Claro que nem sempre esta forma de efabular a vida tem origem apenas nesta espécie de estrutura inata do acto de contar. No meu caso, ela também resulta da convicção de que esta continua a ser uma narrativa que convém ao Mundo.

Como muitos, estou convicta de que o ciclo da Cultura que requereu a Igualdade dos Direitos do Homem e do Cidadão, de que o romance foi a cartilha popular que os ensinou no Ocidente, ainda não está cumprido. Estou convicta que o exercício da cultura crítica e profana que o romance proporciona, por oposição ao absolutismo dos livros sagrados, está no centro das contradições do nosso mundo globalizado. Mais do que isso, estou convicta de que este é um género cujas formas narrativas permitem fazer um anteparo e uma barreira em face da nova narrativa dos media. Essa que, pela sua natureza, não permite nem o antes, nem o depois da catástrofe, permite e está feita, sobretudo, para a difusão da catástrofe. Com o contraponto natural da distracção pelo seu oposto, o grotesco e o banal. Neste campo dual, entre sangue e clown, o romance continua a oferecer um acto de resistência a essa simplificação binária que todos experimentamos. É uma questão de tempo. A catástrofe no romance, como na tragédia grega, de onde colhe a origem, tem tempo para dar voz ao enigma que se avoluma, às razões do enlace e do desenlace, ao coro das vozes avisadoras, tem tempo para fazer da narrativa uma demonstração, ainda quando cega, ou selvagem. A linguagem alongada do romance, este género em que o início está separado do fim, por um longo fio de factos interiores, revestidos por palavras e silêncios, permite que a catástrofe se desenrole sob os olhos do pensamento, como um oxímoro. Porque o fim negativo pode estar lá, mas para reclamar o seu contrário, fora das páginas escritas, no plano real da vida. Günter Grass, de quem esta Fundação tem o nome e cuida da obra, é precisamente um dos grandes mestres dessa poderosa reivindicação de um concerto, através da descrição plasmada do seu contrário. Quem não entender que o romance nos nossos dias continua a ter essa finalidade subversiva, não entende a contradição do momento que nos calhou viver na História. Ainda que a cada um assista a sua própria História.

Pela minha parte, escrevo a partir do meu país, sobre o meu país. As figuras de ficção com as quais convivo têm a sua origem na minha terra de sol luminoso e silêncios fantasmais. Onde a democracia recente, em muitos aspectos, é apenas formal e os três poderes ainda não estão deslindados. Onde o hábito de esconder, adiar, protelar o confronto com a verdade para um calendário sem dia ainda é comum. As minhas figuras inventadas levantam-se da noite das vidas reais, a partir do sentimento de escândalo criado pelas omissões que se adivinham, pelos crimes silenciados, pela sensação de impunidade contra a qual os meus personagens se deitam e se levantam no meio das folhas por escrever, e dizem coisas mesmo quando não sabem falar. Como poderia ter encontrado outra forma de traduzir todo esse teatro interior se não fosse o romance?

Foi esta forma fílmica, longa, entornada, centrada em personagens parecidas com gente, que me permitiu dar testemunho de vidas acantoadas nos campos do meu país, os escondidos no fundo das cidades, os perdidos por outras regiões da Terra, os regressados, os silenciados no meio das famílias e dos grupos, os que não conseguem dizer eu sei, eu vi, eu espero, e têm as palavras entaladas na garganta. O romance permitiu-me sobretudo usar os modos de dizer das mulheres em luta pela sua saída do papel de espias da História para serem actrizes da História. Sempre com a ideia de que por dentro deste género, os Homens ainda não estão perdidos e Deus ainda não está seguro. As duas partes ainda estão lutando.

Para além do que me diz respeito, quero agradecer aos membros do Júri terem chamado a atenção para o facto de este género de resistência que é o romance poder continuar a ser aliado à liberdade de pensamento. Visto do exterior, é sobretudo importante que aconteça numa Cultura que tem por base a matriz de pensamento filosófico mais relevante da Europa e uma das Poesias mais altivas em face das forças desconhecidas. Este prémio diz aos que porfiam por este caminho periclitante de contar, que não estamos sós. E é nessa medida que quero agradecer a Christina Weiss ter lido os meus livros e ter-se disposto a falar sobre eles. Agradecer aos editores Michi Strausfeld e a Jürgen Dormagen por terem dado o seu cuidado e a sua confiança aos meus livros, ao longo de todos estes anos, e à Ray, a madrinha dos escritores de língua portuguesa, por ter-me incluído no seu grupo de defesa. Este momento também é vosso.

Quero dizer, por fim, quanto me alegra que este Prémio tenha na sua matriz esta partilha com o tradutor, essa outra mão direita que escreve os livros. Neste caso, que Karin von Schweder- Schreiner e eu sejamos parceiras. À Karin eu devo as traduções profissionais maravilhosas que são públicas, mas também devo a sua amizade privada. Até lhe devo algumas sentenças de vida, como sejam os provérbios alemães que de vez em quando me envia. Muito em especial, devo-lhe aquele provérbio nórdico que há um ano atrás me ditou, palavra por palavra, ao telefone. Era assim - “Toma nota - Só as aves domésticas têm saudade, as selvagens vão voando…” Mas nesse domingo de manhã, a Karin ainda não sabia que um bicho tão selvagem haveria de vir ao nosso encontro para nos unir tão fortemente - Um Albatroz.

Aos mentores da Fundação Günter Grass quero acrescentar que espero, do fundo do meu coração, e do fundo das minhas convicções, que as próximas edições deste Prémio, para o qual desejo um tempo longo e prestigiado, prolonguem, aqui em Bremen, esta cidade mítica da Europa, a ideia de que a Literatura é, acima de tudo, um campo de Liberdade sem hipótese de fronteiras, desde que revestida pela poesia das línguas.
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* Na sessão de entrega do Prémio Albatroz
em Bremen, 5 de maio de 2006
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