quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Prefácio * Frei Bento Domingues

Nosso contemporâneo

Lídia Jorge *

A pessoa e a obra aqui presentes, tornadas sujeito desta breve intervenção, lembram-me o aviso de Maeterlink quando diz – Sempre que pronunciamos alguma coisa, desvalorizamo-la singularmente.

Acresce que neste caso a coisa é, como se sabe, uma pessoa singular e a obra em questão apenas uma parte visível dessa singularidade. Na verdade, não estarei sozinha se disser que tentar explicar, nestas circunstâncias, a importância que Frei Bento Domingues assume junto daqueles com quem alguma vez conviveu, poderia ser embaraçoso. Embaraçoso também para ele próprio, que perante a declaração da sua importância face aos outros, não sabe onde pôr o olhar. No que me diz respeito, em contexto diferente, eu hei-de descrever a forma como a sua conduta e o seu pensamento, à distância, me têm sido decisivos no modo de encarar a vida e o Mundo.

Mas agora trata-se, antes de mais, de referir o conjunto das cinquenta e uma crónicas, publicadas no Jornal Público, entre 1994 e 1995, aqui reunidas com o título de As Religiões e a Cultura da Paz, um belo volume ilustrado por uma imagem que representa, na sua ambiguidade, tanto a deflagração quanto a fulguração dos ícones, e inscrita numa colecção cujo enunciado, só por si, inclui a síntese do tempo disjuntivo a que estes escritos se referem – «religião sem Mundo, Mundo sem religião». Eu diria que a ideia que lhe está subjacente, por antonomásia, é precisamente, a reclamação não de um mundo com uma religião, mas um mundo com religiões, e nessa junção ecuménica das totalidades na Totalidade, reside a mensagem de paz por que reclama o título. Esta é a entrada do livro que aqui se manuseia. Ela faz a diferença, no meio do acervo de fanatismos que hoje campeiam. Ela permite inclusive que se aproximem os que crêem dos que não crêem, como se de permeio entre eles, não existisse a separá-los mais do que a espessura dum pano de seda. Permite que se olhem e se interroguem mutuamente, e no mesmo pé de humanidade, os que vivem na Casa da Certeza e os que vivem na Casa da Dúvida, sabendo os primeiros que para os segundos não está apenas reservado o caminho do estorvo, sabendo os segundos que aos primeiros não está apenas reservado o caminho da segurança. Eu diria que é na capacidade de deixar coabitar estes dois espaços do humano, e dessa coabitação retirar as consequências para o incremento da fraternidade, que Frei Bento Domingues consegue criar um espaço de pensamento, entre nós, verdadeiramente original.

Provam-no, de facto, estas crónicas. Publicadas aos domingos, elas são os sermões modernos em que o púlpito foi arrasado, e em que o destinatário, ultrapassados os limites das paredes, se transformou num grupo vasto e diferenciado, tão difícil de determinar quanto difícil de atingir e onde se incluem os crentes, os não crentes, os agnósticos, tanto quanto os duvidosos e os inqualificáveis. O segredo da sua eficácia junto de um público tão heterogéneo, encontra-se ao nível da qualidade do seu raciocínio e da sua sustentação informativa, ambos arredados do forcing persuasivo. Essa originalidade advém-lhe naturalmente do facto de ser, antes de mais, um intelectual sólido, alguém que coloca o espaço da leitura e da erudição ao serviço da formulação dum raciocínio sempre novo e sempre aberto, perante a transformação imparável do Mundo, sismógrafo sensível dos terramotos sociais por que passam os nossos tempos, com um discorrer radicado na sensibilidade à mudança. Por isso mesmo, a parte destas crónicas que é doutrina assume um princípio activo, mas impregna-se-lhe numa totalidade vivencial, como se existisse para iluminar os passos dos homens e nunca para separar-se deles.

Eu diria mesmo que este pregador, que junta ao seu nome O. P., como aviso, é alguém que se move na área da doutrina e da pregação, como se o não fosse, processando o seu raciocínio com uma clareza cartesiana, indo de argumento em argumento, encadeadamente, como um filósofo metódico, até atingir o cinto inultrapassável do dogma, a verdade recebida e não encontrada, espalhada no campo da doutrina. Melhor dizendo, Frei Bento utiliza o cinto do dogma na sua versão mais fina, o menos estranguladora possível, o mais sustentada possível pela evidência do concreto e do provável. Não admira que Frei Bento declare na introdução a este volume, aquilo que se depreende do seu método de trabalho – (...) nunca escrevo sobre um tema sem o estudar de novo, nunca confio no que já sei, detesto o impressionismo. Por conseguinte, não admira também que a sensação que se alcance com a sua leitura seja de clareza, segurança e liberdade, uma vez que o cinto de todos os dogmas ele os sintetiza, em última instância, na evidência de Deus como amor. As crónicas de Frei Bento são “desdobráveis” inteligentes que se oferecem ao pensamento, abertas em várias direcções, e nessa medida também são sermões, isto é, raciocínios que podem conduzir à fé se o leitor aceitar a verdade que o autor toma por incontornável.

Mas se o conteúdo é a forma da matéria, como creio, eu diria que a maior sedução destes textos provém da sua íntima substância. De testando o vago e o impressionismo, não estamos perante um raciocínio lógico, nem seco nem frio. Nestas crónicas, prolongamento de Frei Bento como pessoa, o seu raciocínio nunca está separado da massa sensível que habita as coisas e os seres. Ao ler-se Frei Bento Domingues, percebe-se que se está perante um homem aberto à grandeza. À grandeza do cosmos, à magnânima fragilidade do humano, ao rosto irrepetível nas multidões, à pele da História, inocente e deslumbrado como se fosse um poeta, que só o não é formalmente, porque o poeta faz experiência do escuro e exibe a escuridão como medida, e Frei Bento é um poeta que escolheu à partida a luz do princípio iluminado, e fez dele o seu método de clareza. Porém, dentro de si, conserva intactas essas duas coisas. Só assim se entende que seja um pregador tão hábil, homem de cerimónia e de parcimónia, capaz da paciência e da piedade pelos outros, no circuito do próprio raciocínio. Alguém que discorda, surge contra mas não se in-surge, não cria cisma. Entre os seus, percebe-se muito bem o que recusa, como recusa, porque recusa. O próprio Papa e o Cardeal Ratzinger, bem como Fátima e outras entidades, são figuras que surgem no rodapé dos seus reparos. Há nele, porém, uma forma cordata de discórdia, que passa muito mais pela insistência do que pela indignação. Aliás, em relação aos grandes problemas, depreende-se-lhe uma constante de procedimento notável – é frequente Frei Bento desenvolver um raciocínio, deixá-lo a vibrar intensamente em torno da tese que advoga, para depois suspendê-lo e terminar sem dar o golpe fatal, ficando o raciocínio em aberto, à disposição duma resposta, como se fosse uma conversa interrompida. Por vezes, só assim se entende a sua oposição, ou a sua resistência, ou o seu destinatário, quando posteriormente volta ao assunto, retomando-o pela ponta do ziguezague interrompido. Também só assim se entende como nestas crónicas, bem como nas anteriores e nas posteriores, se desenvolve toda uma cultura de compreensão do papel dos mais vulneráveis, divergente do pensamento dominante, como sucede, por exemplo, no caso das mulheres, tema desenvolvido cautelosamente, sob o anteparo for mal desse tipo de raciocínio inatacável, interrompido no momento exacto.

Mas nem sempre é assim. Por vezes, o pregador da crónica toma a realidade e os factos, e denuncia a incongruência, o anacronismo, o interesse próprio, o miserabilismo mental, juntando as pontas que o evidenciam, munido da ironia. Exemplar nessa desmontagem é a Crónica “a Capital do Bruxedo”, quinta crónica deste livro, peça literária notável. Outras vezes, deixa-se comover pela irritação e pela revolta. Falando do Peru, país maravilhoso da América Latina, aviltado socialmente de todas as maneiras, e referindo-se em particular à cidade de Lima, Frei Bento não tem rebuço em declarar – A porta para este mundo fabuloso é um nojo. Lê-se na primeira crónica desta série. Também na última, a quinquagésima primeira, a que tem por cenário o Chile, a propósito do crescimento económico sustentado, e da cultura do contentamento dos afortunados, pode ler-se – “Há (...) muitos sinais, extremamente violentos, de que os enganados, os excluídos, podem reagir por vias do desespero. Já vai sendo tempo de perceber que fora da solidariedade, fruto do compromisso social e da compaixão, não se pode encontrar uma sabedoria partilhável para viver com dignidade neste mundo”. Estes, aliás, são os últimos parágrafos com que termina o volume As Religiões e a Cultura da Paz.

Dado o que está a acontecer, sete anos depois, poder-se-á perguntar se acaso Frei Bento não foi profeta. Dever-se-á responder que não, que Frei Bento, felizmente, não é um profeta. Trata-se apenas de um homem lúcido, nosso contemporâneo, que leva a coragem, de par com o discernimento e a beleza, na ponta dos seus pés, e não se queixa da mágoa que lhe causa – Foi assim que o conheci pela primeira vez, num inverno já distante, a caminhar numa praia, e a associar a força das ondas encadeadas como se fossem uma sombra de Deus. Do seu misericordioso Deus, que vê no rosto de todos, mas não impõe a ninguém.
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* Prefácio de "As religiões e a cultura da Paz",
Frei Bento Domingues
(Mário Figueirinhas Editor, Porto, 2004)
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