domingo, 13 de agosto de 2000

Depoimento * Eça de Queirós

Máquina voadora


Lídia Jorge *

A um ícone não se lhe descobrem feições, apenas se lhe acrescentam flores. Mas no caso de Eça o seu corpo ainda não é de mármore. Vislumbro-o atravessando a Terra, mudando de vapor para vapor e de carruagem para carruagem, apertado de dores de estômago e rindo do mundo como ninguém, até àquele dia de Verão em que regressou da Suíça para se esconder em Paris, definitivamente.

Aliás, é em Paris que melhor o vejo.

A segunda casa de Neuilly sobressai dum razoável jardim e nele uma hera agarrada à treliça espalha-se com demasiado viço pela parede. Serão aí tiradas as melhores fotografias da família quase sempre em contre-plongé. Mas o momento em que melhor o vislumbro é uma certa tarde de Outono nessa Neuilly imprecisa. Eça está sentado a uma mesa, a toalha branca ainda tem os vincos da gaveta e sobre ela um visitante desdobra uma pasta e mostra uma pequena aguarela representando um desenho em forma de esquema. O esquema representa um projecto estranho. Luís Serra, o visitante, é o inventor do projecto e para a amenidade da tarde, tem demasiada impaciência. Ainda se está em 1893. Daí a alguns anos terá lugar a grande Exposição de Paris. Se o inventor português conseguir financiamentos e engenharia suficientes, a máquina desenhada na aguarela vai ser construída e apresentará a forma duma torre de aço de balsas suspensas, com capacidade para fazer voar, cem metros acima do solo, quatro mil visitantes por hora, no que calcula ser um raio de três quilómetros por cima da futura Exposição Universal de Paris, ano de 1 900.

Nesse caso, Luís Serra, seus eventuais mecenas, engenheiros e sócios, todos poderão ficar ricos. Se o próprio Eça quiser fazer-se sócio também será recompensado. Eça vai querer, e por isso em breve firmará contrato com o inventor da máquina voadora, empenhar-se-á pessoalmente no assunto e continuará a adiantar dinheiro do seu próprio bolso para o negócio. Mas o “Voyage Aérien”, espécie de Torre Eiffel estilizada, que depois as feiras do século XX haveriam de popularizar em miniatura, nunca terá um pilar de ferro nem uma única haste real, apesar dos esforços desesperados de Luís Serra, do próprio Eça e das esperanças nele depositadas por Emília de Castro ao longo de vários anos. E aí, se eu tivesse de sintetizar o génio de Eça através duma imagem que não fosse a de um corpo magro segurando a estátua duma mulher despida oferecendo os braços, como a que está na Rua do Alecrim, eu imaginaria Eça sentado no meio de pilhas de jornais e livros , a escrever a crónica sobre “Guilherme II da Alemanha”, um dos mais acutilantes e proféticos textos sobre o que viria a ser o futuro da Europa comandado pelo princípio da personalidade e da Acção germânica, tendo por fundo, contudo, não uma risonha paisagem dos Alpes ou dos Apeninos, mas o esquema alado do seu amigo inventor a quem retribuía a confidência e os sonhos, com aflitivos empréstimos dumas centenas de francos.

Que me perdoe desta irrealidade o próprio Eça ou o seu ícone, se puder.

Sei que os anos aventurosos do jovem cônsul na América Latina deveriam comover-me muito mais, já que entre a juventude e os primeiros amores se tece o melhor do destino. Também a vida de desterro que levou em Newcastle, amarrado entre a lareira e a vela, sentado em frente da mesa pequena onde engendrou a obra grande, deveria exercer no mundo das minhas imagens uma outra sedução. Mais que não fosse pelo rugido das ondas do Mar do Norte de cuja ondulação nunca se apartará definitivamente. Também a visita ao Suez onde viu as águas de dois Mares unirem-se e os pastores de camelos pela primeira vez na vida matarem a sede na abundância, bem como toda a viagem ao Oriente, donde trouxe efabulações fantásticas sobre areais a perder de vista e muros bíblicos, sandálias de Cristo e civilizações arruinadas, tudo isso poderia ocupar um bom lugar nas visitas que lhe faço. No entanto, por oposição a esses mundos vastos, é no aconchego de Neuilly, Avenue du Roule, que melhor se me revela o autor como caso e como mistério.

Parece que é nesse tempo que tudo se acelera e tudo se lhe exige. Multiplicam-se-lhe as ambições como homem de Letras, mas também os afazeres, os negócios, os encargos com os filhos, bem como as solicitações de uns e de outros em todas as direcções. Aumenta o número de criados, de queixumes, de dívidas e aumenta sobretudo o número e a diversidade das doenças familiares. E Eça, desde há algum tempo casado, amado e disciplinado por uma mulher extraordinária embora convencional, parece ter desejado proceder ao esforço de conciliar o irreconciliável. Estou em crer que essa última década, passada em grande parte rente à hera viçosa daquele jardim protector, foi testemunha de como um escritor genial tentou amarrar com várias cordas o minotauro indomável que existia dentro de si. E desse esforço nunca se poderá dizer ainda bem ou ainda mal. Apenas se pode dizer – Foi assim. Talvez por isso, sempre que vislumbro Eça, debruçado sobre a mesa do seu gabinete de trabalho, o veja acompanhado pelo desenho da máquina voadora do amigo Luís Serra com seu inacreditável contrato. É como se o esquema da máquina voadora estivesse sempre a lembrar que jamais se sabe onde começa e acaba a irrealidade, nem onde esmorece o espaço livre da inteligência e se inicia a emaranhada aflição de viver.

É assim que o vejo. Imagino-o dividido, ensaiando uma estranha forma de submissão a alguma coisa cuja verdadeira natureza nunca irei encontrar revelada. No artigo da sua contemporânea Emília Pardo Bazán, publicado em Madrid, no dia em que Eça fazia quarenta e quatro anos, e que Campos Matos divulga na “Correspondência Epistolar” - onde, aliás, vem reproduzido o esquema da máquina voadora - a escritora galega fazia um encómio inteligente à figura e importância de Eça, e a dado passo, a propósito da relação entre autores e seus públicos, sublinhava a ideia de que o escritor actua sobre os seus leitores ao mesmo tempo que estes, por sua vez, exercem sobre o escritor uma opressão extravagante. São suas as seguintes palavras - “Toda a massa de leituras desenvolve por meio da sua simpatia, da sua surpresa, e até mesmo do seu protesto de indignação, uma corrente eléctrica que se comunica ao escritor e influi decisivamente na direcção do seu engenho” .

Claro que a senhora não precisava lembrá-lo porque Eça também o sabia. Todo o escritor o sabe. Sobre tal matéria só o que não se sabe é onde reside a fronteira da resistência a esse eflúvio exterior. E no caso de Eça, o que particularmente incomoda é não saber, apesar de tudo quanto o próprio disse a seu respeito e outros já aventaram, que tipo de opressão o fez mudar de rumo e o tornou melhor comportado, mais complacente, nacionalista e até risonho.

Necessidade de amor? E que espécie de amor? - Terá cedido à opinião dos que interpretavam um livro como uma esfera e se encarniçaram contra a celebrada imperfeição de “Os Maias”? Terá achado que tinham razão aqueles que o culpavam de ignorância sobre o seu país, malvadez, estrangeirismo e snobismo ultrajante? Ter-se-á cansado de responder aos portugueses como respondia a Pinheiro Chagas, com sete navalhas mortais, a partir de Bristol? Ou simplesmente o seu coração nervoso cedeu à voz oculta que coincidia por acaso com a de Emília Pardo Bazán ? Escreveu ela nesse artigo de agradecimento pela visita que Eça lhe fez - “Este grande artista português seria muito maior, quase perfeito, se tivesse brotado da própria entranha da sua nação; se fosse castiço, puro, lusitano ou peninsular até à medula, filho e continuador da tradição literária do seu país”. E Eça, que durante as horas que permaneceu no hotel da senhora, segundo confissão da própria, nem foi aquecido pelo lume da sua lareira, voluntária ou involuntariamente , acabou por fazer-lhe a vontade. Aí viriam “ A Ilustre Casa de Ramires”, embrenhada em suas paisagens bucólicas, e sobretudo a didáctica “ A Cidade e as Serras”, para fazer bem aos adolescentes, às senhoras e aos cristãos de Portugal. Que alívio! Finalmente o filho pródigo voltava à casa mãe, ou pelo menos ao solar natal. Voltava cansado e quase puro. Aliás, em breve voltaria morto. País finissecular decadente, com medo pânico da Cultura, fingindo que apenas tinha medo do sexo, nessa altura não lhe regatearia obséquios.

Pergunto-me mesmo quantas das missas rezadas por sua alma em solo português não terão sido decididas por altura daquela passagem em que Jacinto pede ao amigo que deite fora certas revistas atrevidas. Ouço uma senhora de espartilho a ler – “Era uma papelada, de que eu me sortira na estação de Orléans, toda recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de parisianismo, de erotismo. Jacinto, que as reconhecera, gritou rindo:

- Deita isso fora!”

Zé Fernandes deitou.

Agora sim, o grande prosador estrangeirado tinha escrito coisa que se lesse. O resto, o que estava para trás, que ficasse amarrado dentro das arcas ou se deitasse fora como Jacinto pedira que se fizesse às revistas de Paris. Era um consolo. Finalmente os dois últimos livros de Eça podiam ser oferecidos às raparigas casadoiras que soubessem ler e até ser colocados na vitrines da casa, ao lado do canapé . Porque não?

Mas voltando a Neuilly e à hera que alastrava pela parede, é preciso dizer que nem todas as pernas dum minotauro se conseguem atar em simultâneo. Tocado de várias maneiras pela obsessão de interpretar a Civilização de que era paladino e usufrutuário, ao mesmo tempo que engendrava regressos de Jacintos a casarões pátrios, símbolos de mundos feudais que Eça sabia condenados, enquanto isso, nas contemporâneas “Cartas de Paris”, Lisboa e o decadente mundo português continuariam a ser zurzidos sem piedade. Era como se Eça tivesse quatro braços, quatro mãos, várias penas e de todas elas fizesse uso ao mesmo tempo. Numa dessas cartas, escrita possivelmente por volta de 1893, só em duas páginas e a propósito de cidades e civilizações, Eça não deixou de associar, pela insipidez humana, a cidade de Lisboa com a superfície da Lua. Para logo lembrar que Lord Byron também havia declarado que o elemento que estragava a beleza de Lisboa era precisamente a presença do lisboeta. Mas uma amostra de Eça, o verdadeiro Eça, rindo em todo o seu esplendor, encontra-se numas linhas atrás da mesma carta. Escreve Eça com a sua pena mais genuína entalada nos dedos da mão direita - “ .... a verdade é que, fora de Paris e Londres há bastante humanidade. São Petersburgo não forma só sobre a neve outra ondulação de neve; Berlim não é uma só floresta de seiscentos mil castanheiros; em Lisboa mesmo se encontra, de vez em quando, um homem”.

E adiante, bem mais adiante, ainda num desse bilhetes contemporâneos do regresso de Jacinto às eiras e aos quintais, Eça toma por vítima a actriz francesa Sara Bernahardt e desfá-la, num escrito intitulado “Aos Estudantes do Brasil, sobre o que deles conta Madame Sra Bernhardt”. Terrível. Poucas vezes a ironia de um escritor terá conseguido ir tão longe. Um carnaval de imagens e chacota faz a actriz montar um bando de estudantes brasileiros como se fossem bestas, mas de tal forma engenhosa e sarcástica resulta essa comédia, que Sara Bernhardt acaba por ser não a pessoa levada aos ombros no auge de seu triunfo e glória, mas a figura verdadeiramente atrelada. Aliás, Portugal não está arredado dessa monumental paródia. Eça lembra que, à imagem dos estudantes brasileiros suspensos do brilho de Sara Bernhardt, também os estudantes de Coimbra, alguns anos atrás, tinham puxado por certa caleche forrada de damasco azul, e até haviam puxado a galope, relinchando de puro entusiasmo, pois lá dentro seguia o vigésimo oitavo rei de Portugal de visita à Academia. E como tinha o soberano recompensado os estudantes que quadrupedamente haviam desse modo relinchado o seu amor pelo rei? Nada mais nada menos do que isto - O rei português havia concedido à Academia oito dias de feriado.

Pode-se ler numa das últimas “Cartas de Paris”.

Delirantes páginas, maravilhosas páginas de riso e insubmissão, as destas cartas escritas com a melhor das penas. A melhor pena da sua mão direita, a que iria fazer escola durante largas décadas. Aliás, durante todo o século XX, sempre que em Portugal se pretendeu rir por escrito, Eça esteve presente, e continua a estar, como se só ele constituísse um género. E tudo isso, enquanto uma outra pena – a quarta ou a quinta das suas penas - apontava para os profundos da terra e as lonjuras infinitas do céu e escrevia sobre as terríveis vidas dos santos. Noites, trovoadas, tentações, desfiladeiros abissais e montes intransponíveis, pondo à prova farrapos de homens, oscilando entre a queda e a sublimação, como no princípio das suas prosas, quando então ainda eram visivelmente empurradas por Hoffmann e Poe . Penas distintas, várias, uma em cada uma das várias mãos, para servir vários mundos, embora com uma mesma poesia e uma mesma língua, sob a qual existia um só homem.

De facto, de que teve medo? A que Deus de partilha ou a que Diabo, obedeceu?

Às vezes, por Eça penso em Nietzsche, como ele desaparecido em 1900, como ele interpretando sem piedade a crise do seu tempo e abrindo assim as portas para o dia seguinte. Penso sobretudo naquele momento em que o filósofo do Eterno Retorno se abraçou ao cavalo maltratado, beijando a carne quente da besta. Nietzsche deve ter visto no animal, que o cocheiro espancava com brutalidade, a dor da matéria viva deste mundo e pôs-se a beijá-la. Foi aí que lhe chamaram de louco, com propriedade. Não direi tanto de Eça. Eça nunca enlouqueceu. Mas também nunca desesperou. Alguma coisa suportou o seu aspecto formal intacto, viajando com seus livros e malas arrumadas até ao último regresso a Paris. Terá sido, porventura, a poesia do riso que o conduziu assim, sóbrio e discreto até às últimas páginas escritas em Neuilly. Aliás, venha de onde vier, sempre o vejo regressar a Neuilly . Naturalmente que a fixação numa imagem é a nossa forma de desistirmos de sermos sérios ou prescindirmos de sermos totais. Assim retribuímos uns aos outros a limitada forma de sermos homens, mesmo quando admiramos alguém sem limite e quereríamos dizê-lo. Talvez por isso, por prescindir da totalidade, eu continue a ver Eça a escrever, dois andares acima da hera que nunca o alcançou, protegido na prática por sonhos irreais como os do amigo Serra, torres de viagem alada com hipotéticos lucros e outros afins, que o terão impedido de beijar cavalos.

Mas tudo isto é apenas uma forma imperfeita de o visitar. Amanhã, prometo, só haverá flores.

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* Texto inserido na coletânea "Retratos de Eça de Queirós",
edição coordenada por Isabel Pires de Lima 
(Porto, Campo das Letras / Fundação Eça de Queiroz, 2000)
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