sábado, 1 de janeiro de 2000

Crónica * Como um relâmpago a origem do Mundo

A Cidade Invisível

Lídia Jorge *

Escrevo estas linhas diante das terras semi-áridas do meu país. Por aqui os campos há muito foram abandonados e a cabra que berra no monte vagueia como se nunca mais pudesse encontrar um dono. A linha do casario de veraneio, que ao fundo se interpõe entre o mar e a terra, para se encher e esvaziar depois de cada Verão, pertence a um tempo tão antigo quanto o da cabra. Contudo, nada é só o que parece. Por cima desta paisagem esgotada, cresce a cidade invisível.

Extraordinária cidade. Nenhum de nós a conhece porque ainda não se mostrou, no entanto, todos já disfrutámos dos seus efeitos. Sabemos que a distribuição do seu correio é tão rápida que se produz por contacto. Que as suas bibliotecas são tão completas que já não dispomos de tempo para passar os olhos pelas lombadas. As janelas diante das paisagens são tantas que não possuimos mãos suficientes para abri-las. Aliás, a sua geografia é tão imaterial que dispensa mapas, e a sua população tão abrangente, que dentro de décadas pode coincidir com a Humanidade. Assim sendo, ninguém pode dizer que a cidade invisível não tenha vindo para cumprir o que até agora não foi possível. Que suas virtudes não possam impulsionar a realização do bem que muitos quiseram praticar durante séculos, sem conseguirem lográ-lo. Quem diz que dentro da cidade invisível não se possa alcançar melhor justiça? Que dentro dela a distribuição equitativa dos bens não vai finalmente ser alcançada? Que através dela o trabalho não poderá tornar-se mais leve e melhor repartido? Quem nos diz que por ela a Terra não venha a ser mais protegida? Que a Arte e o Saber na cidade invisível não cumpram finalmente o desígnio de ser para todos? Em suma, conhecendo-se o que já se conhece, muitos suspeitam que a cidade invisível, que tudo liga e tudo faz saber, possa conter nas suas ruas sem fronteiras a resolução para muitos dos ideais que apodreceram ou foram traídos.

No entanto, cada um de nós tem uma raiz enterrada num espaço próprio, de que se alimenta e ao qual se prepara para entregar o corpo. Não foi em vão que uma pessoa assistiu à primeira refeição cozinhada num bico de gás butano. Nem foi em vão que uma criança brincou à sombra dos tortos paus do telégrafo por onde as mensagens mais velozes passavam. Pessoalmente, não nego que o tempo do relógio de parede, soltando badaladas lentas ainda comanda o meu balanço interior. Por isso, talvez eu receie várias portas na cidade invisível. Receio os excessos do que antes eram carências. Os ilimites do que antes eram fronteiras. As capacidades sem medida face ao que antes eram possibilidades menores. - São tantos os meus receios, que por vezes não sei se poderei entrar plenamente no interior da cidade invisível.

Pergunto-me, por exemplo, como vou franqueá-la, se ela ensaia um excesso de transparência e eu defendo opacidades várias. Na verdade, tudo indica que essa cidade do futuro se prepara para conhecer a vida de cada homem na sua mais recôndita intimidade. Para viajar ao íntimo do outro, de tal modo que um dia cada um possa vir a conhecer mais de todos do que de si mesmo. Consta que os olhos da nova cidade entrarão primeiro nos invólucros exteriores do meu espírito, minha própria casa com sua cama e sua cozinha, depois no meu corpo com seus ossos e suas vísceras, e finalmente na minha alma, com seus desejos e imaginadas vidas. Então o que farei? Eu, que desta civilização tão antiga quanto a lavoura, guardo o desejo de que um núcleo interno, inexpugnável como uma castelo de pedra, mantenha uma parte opaca, um esconderijo inviolável, em torno do qual cada homem se enrosque sobre si mesmo, protegendo seu coração, seu ventre e seu sexo, à imagem do cão dormindo, para que se possa dizer - "Estou escondido, sou um homem". Será que a cidade invisível o permite?

Também receio que se mude a relação que preside à procriação e eu não aguente ver essa mudança. Que o ilimite da vontade possa mudar a natureza dos homens, se for alterado o parentesco carnal. Consta que a reprodução da vida humana se prepara para prescindir dum ventre, duma mama, dum braço que testemunhe a similitude e o parentesco. Até agora, mães e pais singulares têm-se parecido com os filhos, singulares também. É difícil imaginar que se deseje alguma vez perder a natureza dessa singularidade. Daqui de onde estou, diante de campos em pousio perpétuo, assisti à diferenciação dos homens em relação aos animais que apascentavam, e por isso receio que se regresse a uma outra animalidade, isto é, à reprodução de crianças indistintas umas das outras, com valor de gado. Sonho com a genitalidade associada à vida, e o aparecimento da vida associada a actos únicos. No fundo, sonho com o velho impulso do amor humano, que modelou "A Divina Comédia", "O Vermelho e o Negro", "O Som e a Fúria". Assumo, desejo que as pessoas continuem a nascer de beijos, simulacro de mordidas, essa humana brutalidade. Mas será então que tenho um lugar nessa cidade do futuro?

E receio que o ilimite de conhecimento, na cidade invisível, de súbito, ilumine como um relâmpago a origem do Mundo, arrasando a ideia de um deus.

Não por Deus, que nunca falará, nunca estará nos confins do Cosmos com um banquete de rosas à nossa espera. Mas pela dúvida sobre a existência ou não desse banquete. Na verdade, há muito que se diz termo-nos cruzado com a morte de Deus, mas é mentira. As culturas, até agora, têm-se construído na dúvida sobre a sua morte, mas jamais se organizaram sobre o princípio da sua inexistência. Sobre a interrogação, sim. Modestamente, diante das terras secas do meu país, temo que indo os sábios até aos confins da matéria e dos astros, se apague a Dúvida, rainha do nosso pensamento e da nossa esperança. Se assim for, é possível que os homens sobrevivam. Mas neste caso serão outros homens, terão outra cabeça, outros pés, outras mãos. E então, talvez inventem outra música, outra geometria e talvez dispensem as nossas falas e os nossos livros. E estas palavras, de solitárias, já não lhes digam respeito, contemporâneas que são do asfalto, da colina semeada e da cabra.
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Publicado no Libération (1 de janeiro de 2000)
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