Conto para Saïd
O Signo da Brevidade
O Signo da Brevidade
Lídia Jorge *
Escrevo contos desde que aprendi a redigir, e penso em contos que não escrevo como uma forma própria de pensar sobre tudo aquilo que causa intriga ou espanto. Porque um conto é um raciocínio colorido. Se me perguntam sobre o sentido do passado, eu começo por responder Era uma vez. Se me perguntam sobre as tensões do presente, começarei de novo por Era uma vez. E nada poderei desejar sobre o futuro que não inclua essa fórmula de adivinhação – Sim, era uma vez, no futuro será assim…
Que me perdoem esta forma repetitiva de dizer que só através das vozes desenhadas em imagem com rosto humano posso descrever a parte do Mundo que me cabe conhecer e desconhecer. A culpa foi da minha avó materna. Ela é que me sentava nos joelhos e para me falar do medo, contava contos sobre os mortos, para me falar da alegria contava histórias de princesas, e para me falar da possibilidade de tudo imaginar, contava-me histórias em que os animais falavam e tinham casas e filhos com nome de pessoas. O valor da vida e suas relações começou dessa forma – Ao anoitecer, sobre a minha cabeça, a narradora reportava acções simplificadas, palavras certeiras. Eu já sabia. Segundo elas, tudo o que tinha seu início, seu risco e seu enigma, reclamava uma solução obrigatória, e logo terminava, e eu mesma pedia que o desfecho fosse rápido. Tinha sempre pressa em conhecer o desenlace, como se todo o princípio tivesse nascido para terminar num tempo próximo, em que a dúvida sobre o destino das personagens fosse intensa, mas não demorasse a deslindar. Não corroesse nem maçasse. Tudo começou assim, mas só passado muito tempo percebi que essa harmonia entre início, fim e exaltação do sentido, tecidos sobre o signo da brevidade, eram a cartilha que presidia ao conto.
De facto, na maioria das línguas latinas, a palavra conto anda associada a computum, nome de contar, coisa numérica, ordinal. E nesse caso, contar um conto seria construir uma série sobre o fio da lógica e do número, produzir uma escala de rigor contável, e logo numeral e abstracto. Mas eu prefiro escolher um outro étimo. Também consta que o conto poderá ter tido origem na bela palavra grega kontós, ponta da lança e do remo, gume acutilante, aquele vértice agudo que iria cortando a matéria inútil na perseguição do relevante. Objecto de separar carne ou de separar água. Ora se me é permitido escolher, entre os dois objectos cortantes, eu prefiro o remo à lança. Então, mesmo que não corresponda à realidade, o ritmo do meu conto procura seguir o remo dentro da água, e eu, que sou lenta e demorada, como todos os romancistas são, vou-me dizendo à minha escrita quando escrevo contos - Rema mais rápido, mais rápido, mais rápido ainda…
Sim, procuro obedecer a essa velocidade alta. Tudo começa, em geral, por um achado surpreendente que vem da rua, do voo dum pássaro, duma confissão rápida, uma imagem fugaz no autocarro, acontecida no afã da vida diária, na pressa de existir, no desencontro pelas portas. Um caso raro cujo sentido brilha no escuro porque não se resolve, porque resiste à sua solução, não se conforma com o nosso entendimento prosaico. E porque surge essa imagem, carregada de mistério, se não surgiu para que o seu sentido possa ser dirimido? Como vai ser resolvido o enigma? Não irá sê-lo agora, não irá sê-lo nunca mais? – Nesse caso, então, é preciso ser escrito. Começar por Era uma vez, e chamar as figuras, as ruas, as portas, as vozes, as árvores, o sol que naquele dia caía a pique, naquela noite chorava lágrimas de chuva, naquela madrugada via aviões partirem para países distantes. É preciso convocar essa realidade e chamar as palavras, para que através da configuração de outra matéria, a realidade se faça outra, é preciso entrar para dentro desses espaços agora munidos da cor da metáfora, de modo a poder-se espreitar uma outra lógica, uma outra fórmula, e em conformidade, deslindar o nó sob essa outra luz. Por vezes, porém, o nó não é deslindado. Ele pode ficar a pairar sobre a nossa cabeça, e a persistência desse nó inviolável pode ser o seu sentido exacto. Resistir ao sentido. O conto veio para isso. No fundo o que é preciso é que o sentido em parte se desvende e em parte nos resista, em parte fique a pairar, incompleto e breve, como um poema fica. Uma oferta sucinta. A escrita deve permanecer sob o signo do remo veloz mergulhado na água funda, e a gente vai dizendo mais rápido, mais rápido…
Muito rápido. Talvez por isso o conto seja o género que melhor associamos à viagem e à deslocação. O conto inscreve-se bem como unidade de passagem. Lê-se pela manhã, antes de partirmos. No intervalo da viagem enquanto repousamos. À hora das refeições, está bem um conto, que dura entre a sobremesa e o cochilo. Um conto lê-se na estalagem, ao serão, durante o qual se iniciou uma unidade e se fechou a unidade. Como o sonho da noite que se esboça, se joga na plenitude da sua irrealidade dramática, e passado um tempo sem tempo, se desfaz. Vai e vem durante um sono, na cama do hotel. O conto é o género que sai do sono e que melhor se aplica ao nosso sonho. O antes e o depois aproximados pela suspensão dos tempos. Novalis disse – “Tudo acontece em nós muito antes de ter acontecido”. Assim é. E este é o género que melhor procura encontrar esses dois tempos reunidos. O conto, como o poema, persegue o âmago desse encontro.
Pois o romance, onde me afadigo sem parar, como se fosse uma tarefa de lentidão e largueza, herdada de uma região que desconheço, repete a vida, retoma-a e reprodu-la, toma as suas vinte e quatro horas e olha-se no espelho de longos meses e anos. Reproduz a existência. Mas o conto não pode reproduzir a existência, apenas escolhe instantes e por isso, mais do que perseguir a vida o conto persegue o ser. Era uma vez, resume a forma encontrada para se declarar que em toda a diversidade procuramos um ínfimo todo, que não era, nem será, apenas tem de ser. O conto enquanto género condensa a fórmula escondida que suporta o género humano, e que só de vez em quando ainda a medo nos afoitamos a pronunciar - É uma vez. E no entanto, para escrever contos, não é preciso pensar em nada disto. Para escrever um conto, basta deixar que a realidade do Mundo entre para dentro dum teclado onde batem, como patas de cavalo, os nossos dedos. As frases formam-se sob o atrito das falanges, e é tudo.
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* Texto inserido em antologia de originais editados em árabe
(Saad Warzazi Éditions, Marrocos, março de 2011,
tradução e selecção de Saïd Benabdelouahed)
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