terça-feira, 15 de março de 2011

Apresentação * Francisco Duarte Azevedo

O Trompete de Miles Davis

Lídia Jorge *

Estamos perante um policial? Em parte, sim. Aqui existe um trompete roubado e toda uma teia de passos e factos intrigantes, pistas falsas e outras escondidas que levam trezentas páginas a deslindar. Também existem acenos de morte, e figuras tão decrépitas que já não têm redenção possível. E existe cheiro a sangue, clorofórmio e uma bela morgue onde se desmaia. Existe a tragédia feita cenário, e a comédia erguida em torno do detective, como é próprio do género. E também existe o suspeito inocente e a culpa que anda repartida de colo em colo até se chegar à mão de quem executou o acto, de modo a podermos dizer, enfim, neste mundo existe uma ordem, e existe, evidente, a lei do crime, que, mau grado a surpresa, está submetida como tudo o mais a uma lei universal. É isso que sempre se descobre nos grandes livros do género, e este não lhe fica atrás.

Mas este livro é muito mais do que um caso de polícia escrito para entretenimento, em que ao leitor é oferecido um tabuleiro de xadrez com metade das peças para ir jogando sozinho, tentando aplicar a lei - Porque não dizê-lo? O Trompete de Miles Davis é um livro literário no sentido mais amplo da palavra, construído em torno de uma atmosfera, de um sentimento e de uma ideia que o provoca. Uma atmosfera de confluência entre um certo mundo norte-americano residual, fixado em torno dos seus modelos tradicionais, cruzada com o retrato de um melting pot actual agindo ao vivo, onde avultam em particular as lembranças ternas e cómicas do mundo emigrado lusitano. E a singularidade desta memória portuguesa, tocada pelo habitat do Novo Mundo, age sobre a alma do detective lusitano de uma forma particular. Saudoso, melancólico e literário, sóbrio e furioso, adaptado e ao mesmo tempo renitente, sente-se, da primeira à última página, a presença de uma identidade que pensa e escreve, emprestando um tom de verdade ao correr das linhas. O brilho deste livro nasce aí, nessa junção feliz de várias máscaras que, unidas, oferecem o tom agilíssimo da escrita.

Nesta narrativa, personagem, actor e autor, essas três figuras reunidas confluem para um caudal de imagens, diálogos, cenas e monólogos interiores, de tal modo entretecidos, que por vezes se pensa que estamos paredes meias com páginas ao mesmo tempo tão compassivas e tumultuosas quanto as de John Fante. Além de que existe uma ideia mãe que atravessa este livro. Mas tal como nos bons policiais, a ideia forte não deve ser desvendada. É preciso escavar na leitura. Bastará dizer que ela se encontra disfarçada de graça, e de brilhos, embrulhada atrás da quinquilharia oficial, no mundo que parece ser o do quotidiano triunfante, e sob ele existe um outro retrato. Descobri-lo é tão importante quanto perseguir o destino do trompete verde, que tem o potencial inquebrável duma lenda, mas não tem diamantes, donde o quiproquo. Uma ideia escondida, que de vez em quando assoma na espuma da prosa deste livro. É assim que, quase a terminar, a frase roda e abre a porta na direcção certa, quando o detective lusitano lembra a síntese de Joshua, um outro deslocado do seu antigo poiso – Até um pássaro busca o seu ninho.

Mas porque me comove tão intensamente “O trompete de Miles Davis?” - Porque é um livro que alcança muito mais do que pretende e atinge muito mais longe do que anuncia. Porque, nesse desprendimento, nos entrega figuras que nunca mais se afastam do nosso pensamento, tais como Glory Fortunate, Manny Duck, Willy ou Brad Rice, movendo-se num mundo ao mesmo tempo irónico e lírico, épico e prosaico, rente à sublimação da vida vivida e da vida sonhada. Não é um detective que está por toda a parte neste livro, é um autor que sonha. E de súbito, ele acorda, nós acordamos e o jogo da contemporaneidade cai-nos em cima. Um primeiro livro que parece ser o sexto. Confesso que não esperava.

________________
* Apresentação do livro "O Trompete de Miles Davis",
de Francisco Duarte Azevedo (Planeta, março 2011),
no Salão de Honra do Instituto Camões,
a 15 de março de 2011

Tire uma cópia

Sem comentários :

Enviar um comentário