quinta-feira, 24 de março de 2011

Ensaio de leitura. Carlos Reis e "A Noite das Mulheres Cantoras"

O romance 
como rosto do mundo

Carlos Reis *

1.
Abrimos um novo livro de uma escritora consagrada e procuramos não tanto razões para o ler, mas antes as palavras novas (os sentidos, os temas, as articulações formais) que esse livro nos trará. Ou seja, inevitavelmente lemo-lo no contexto de uma produção literária já conhecida e mesmo estudada, o que faz impender sobre o título acabado de aparecer uma espécie de perverso e exigente efeito sociológico que traduzo neste termos: trata-se de saber em que aspetos o novo livro faz avançar a obra da autora e até a ficção portuguesa contemporânea, formulação que deixa transparecer uma espécie de teleologia literária não isenta de ressonâncias hegelianas.

Não discuto agora a pertinência de uma tal formulação, que releva também de uma ponderação epistemológica em torno da razão (ou da sem-razão) da história literária enquanto tal; prefiro relacioná-la com a forma como hoje se compõe e recompõe o campo literário. É sabido, com efeito, que este tem vindo a perder a hegemonia simbólica que outrora conheceu, pressionado como se encontra por outras práticas (música popular, cinema, televisão e seus concursos, imprensa cor-de-rosa e suas vedetas, etc.), que insidiosamente vão impondo as suas lógicas de celebração do “talento”, com inerente dependência do marketing. Está esquecido e talvez bem esquecido um poema (“Marketing”, no livro homónimo, de 1969) de um escritor outrora famoso, Fernando Namora, que com alguma inocência (assim vista de hoje, é claro) justamente problematizava a invasão do marketing no espaço público que a literatura também disputa. O êxito “literário” de apresentadores e comentadores de televisão e de “autobiografias” encomendadas por heróis futebolísticos a jornalistas disponíveis estão aí para evidenciar as vantagens económicas e as sobredeterminações de notoriedade decorrentes do cruzamento de mundos à primeira vista estranhos. E não deixa de ser irónico (ignoro se deliberadamente irónico, o que pouco importa para o caso) que o novo romance de Lídia Jorge de que aqui quero falar (A Noite das Mulheres Cantoras) ficcionalize justamente um processo de procura de êxito e de fama por parte um grupo musical, nos anos 80 do século passado; acontece que foi a partir de então que os tops de vendas e as engrenagens dos concertos começaram a desbancar os protocolos de afirmação e de circulação pública, ainda de inspiração oitocentista, da literatura a que alguns (eu, por exemplo) persistem em chamar séria.

2.
A escritora séria chamada Lídia Jorge evidencia-se-me como tal em função de uma produção literária cujas linhas de força, apesar do escasso distanciamento com que a olhamos, se deixa já captar com alguma nitidez. Essas linhas de força devem ser aqui recordadas, para melhor nos entendermos quanto aos significados deste A Noite das Mulheres Cantoras. Bem enraizada numa atmosfera de mudança da História (do final do século XX ao princípio do século XXI), a obra de Lídia Jorge é permeável a rumos e a interrogações que é já possível traçar, sem prejuízo de se reconhecer que o próprio sentido da mudança vem a ser, cada vez mais, intrinsecamente estruturante da obra da escritora. Dois desses rumos: o que conduz à emergência de uma literatura centrada na guerra colonial e nas suas sequelas ideológicas, que ainda ecoam entre nós; o que leva ao advento (muito forte desde os anos 70) de uma literatura que problematiza a figura da mulher, a sua voz e os seus modos de ser em tempos pós-modernos e pós-coloniais.

Passa-se isto, em Portugal e em Lídia Jorge, sob o signo de transformações sociais e mentais às vezes aceleradamente incorporadas no viver coletivo. Por exemplo: os resquícios da memória colonial e as agruras do redimensionamento nacional pós-imperial; a europeização dos modos de vida e as obsessões da modernização; as bruscas modificações de comportamentos às vezes seculares e as repercussões mentais e sociais de movimentos migratórios; as constrições de quotidianos normalizados e a transformação do papel da mulher e da sua mentalidade; as práticas de exclusão social e a subversão das linguagens com crescente influxo da civilização da imagem.

É de tudo isto que se vai fazendo uma obra, na aceção sociologicamente mais exigente que a expressão pode ter. E é por tudo isto que um novo romance de Lídia Jorge traz consigo o halo de expectante responsabilidade que atribuímos à escritora. Depois d’O Dia dos Prodígios (1980), d’O Cais das Merendas (1982), de Notícia da Cidade Silvestre (1984), d’A Costa dos Murmúrios (1988), d’A Última Dona (1992), d’O Jardim sem Limites (1995), d’O Vale da Paixão (1998), d’O Vento Assobiando nas Gruas (2002) e de Combateremos a Sombra (2007) (não estou a citar de forma exaustiva), o novo romance de Lídia Jorge reajusta os temas a que já me referi a uma história que, nos termos sinuosos da retórica ficcional encenada em A Noite das Mulheres Cantoras, confirma o impulso inovador que aqueles títulos trouxeram à nossa literatura. Tudo isso e também a confirmação de uma aguda consciência do romance

3.
Falo de consciência do romance em Lídia Jorge (uma consciência indissociável de uma mais lata consciência da língua de que a escritora deu conta em diversos locais: por exemplo, no seu Contrato Sentimental, de 2009) para lembrar um seu importante texto a este propósito. Intitulado “O Romance e o Tempo Que Passa ou A Convenção do Mundo Imaginado” (em http://www.plcs.umassd.edu/ docs/plcs02/plcs2-pt4.pdf), esse texto formula de forma muito clara a função que a este fundamental género narrativo é atribuída por Lídia Jorge: “Creio que o romance continua a desempenhar uma função que nenhum outro género desempenha, até porque o romance, género de narrativa recente, é o rosto visível do mundo contemporâneo, e mãe duma antropologia nova que ainda só há dois séculos fundámos, e que não pode estar prestes a terminar.”

Ser “rosto visível do mundo contemporâneo” é, neste contexto, configurar, como cronótopo e como ficcionalidade, uma imagem do tempo e do espaço que vivemos (vivemos: ambiguamente presente e passado), refigurada pela linguagem do romance, essa mesma que é capaz de insinuar a antropologia nova que lhe é própria: a dimensão humana da narrativa, com a personagem como seu fulcro, as derivas da alegoria, da parábola e da reelaboração do tempo, sob o signo daquela vivência humana, são as cenas em que aquela antropologia nova se desenrola. É assim em A Noite das Mulheres Cantoras de Lídia Jorge.

4.
O ponto de partida para a construção d’A Noite das Mulheres Cantoras é um relato, “O conto de Solange” (ou “Noite perfeita”), datado de 16 de novembro de 2009, relato a que a escritora terá tido acesso, conforme anuncia na nota preambular “Sobre este livro”. Propondo-se desenvolver em “versão alargada” aquele conto, Lídia Jorge retoma um procedimento similar ao que conhecíamos d’A Costa dos Murmúrios e confirma uma espécie de poética da narrativa a que não é estranho aquilo a que chamei a consciência do romance: nenhum relato está irrevogavelmente completo, nenhuma versão das coisas é impenetrável e um novo olhar, o mundo reconstrói-se pelo poder representacional do romance. Ou então, retomando as palavras da nota prévia: “narrar, seja lá de que modo for, é sempre uma forma de continuar a infância do mundo. E a sua orelha, que não se confunde apenas com a matéria sensível, por certo que será infinita”.

Aquilo que “Noite perfeita” nos propõe não é apenas e singelamente a evocação de um episódio de celebração do êxito passado de uma banda feminina. Há, para além desse êxito projetado no espaço público, uma “lembrança privada” que não cabe nestas páginas iniciais. Mais: o que parece fulminantemente transitório – o “reino do efémero” ou o “território do império minuto” – deve ser aprofundado na “antropologia nova” chamada romance. Passados 21 anos só ele pode dar testemunho da densidade humana e do impulso de interpelação social que a história da banda feminina esconde.

Justamente: 21 anos antes da “noite perfeita” nem tudo o era, apesar de agora tendermos a pensar que assim foi. É bem verdade que a seletividade das nossas interesseiras recordações pessoais pode ser redutora se a ética do romance a não compensar, para benefício da nossa memória comum. No Portugal do fim dos anos 80 (por 1987 e 1988), cinco jovens mulheres – Solange de Matos, Gisela Batista, as irmãs Nani e Maria Luísa Alcides e Madalena Micaia – investem as suas ilusões quase juvenis no reino simbólico da música. É nele que a harmonia perseguida, a declinação do individual no coletivo e a tensão do sujeito com o grupo levam à configuração de uma frágil personagem coletiva. O conjunto em ensaio (ensaio: tentativa, experiência e prova) protagoniza também um processo de formação e aprendizagem, bem sintonizado com a lógica de um conhecido e consequente subgénero do romance europeu, o Bildungsroman. Nele, mudança, amadurecimento e indagação são sentidos estruturantes de certa forma projetados sobre todo o relato em que a pessoa humana está, como usualmente acontece, no centro dos acontecimentos. Acontece isso mesmo com as personagens femininas d’A Noite das Mulheres Cantoras, personagens que, antes de serem femininas, são sujeitos individuais aprendendo e ensaiando a autonomia da pessoa e o seu livre arbítrio, a dialética da liderança e da submissão, a afirmação da vontade própria e a aceitação do outro, grandes temas que agora e sempre povoam a literatura em que nos revemos. Porque também assim somos.

5.
A história contingente d’A Noite das Mulheres Cantoras é mero pretexto para o que vai sendo descoberto. No decurso do ensaio para a produção de um disco e de um concerto, emergem as diferenças individuais, sobretudo a de Madalena Micaia, em quem ressoa (no que é cúmplice de Solange) um outro e bem singular mundo, o de África, com os seus instintos dificilmente enquadráveis na sociabilidade “europeia” do grupo e das suas convenções artísticas e sociais. A morte de Madalena sobressalta a harmonia instável do conjunto; e a vivência amorosa de Solange induz uma maturação pessoal vivida numa clandestinidade em que se encena também a perda da inocência. “E assim nos dispersámos” (p. 293), como se por magia se resolvessem e enterrassem os dramas a que a experiência coletiva obrigou.

Mas as coisas não são assim tão fáceis e o romance (este romance) existe para nos lembrar isso mesmo. Digo para nos lembrar, porque o romance é sobretudo uma voz contra o esquecimento, conforme se sugere quase no final d’A Noite das Mulheres Cantoras: “Se insisto na questão do esquecimento, é talvez porque nenhum outro assunto tenha sido tão importante quanto esse, ou talvez porque nem mesmo haja outro assunto”. A isto acrescenta-se, quase logo depois: “Mas o que mais me intriga, passados vinte e um anos, é que todos nós tenhamos estado tão próximo dos mesmos factos, que cada um de nós tenha tido acesso a informações diferentes, e que nunca esses dados se tenham cruzado” (p. 229).

Justamente: este romance, contado pelos filtros conjugados da memória e da vivência do tempo, segundo a narradora Solange de Matos no presente da narração, vem dizer-nos que só ele é capaz de recuperar, por um processo efabulativo que transcende o concreto e o contingente, aquilo que de pessoal, social e cultural importa reter, para agora e para um futuro comum alicerçado na memória que não deve ser rasurada; assim o romance ajuda a enfrentar a morte, conforme a noite simbólica dá a entender: “Eu tinha a ideia de que aquela noite não era uma noite, era aquele momento circular e totalitário de que falam as pessoas que uma vez estiveram à beira da morte e contam que, num ápice, reúnem numa só paisagem todos os pontos altos da sua vida, tudo o que viram e experimentaram, e todos aqueles que conheceram ficam equidistantes de um ponto fixo aberto no coração, correndo diante do olhar e do pensamento de forma imparável” (p. 302).

6. 
Esta paisagem chamada romance é, para Lídia Jorge e para quantos com ela nisso creem, uma forma superior de representação de uma outra realidade. Por isso ele continua a merecer a confiança da escritora. “Sou daqueles”, diz-nos Lídia Jorge no texto que já mencionei, “que se inquietam mas que creem que a maquineta de Guttemberg não acabou, nem a Literatura nem sequer o romance, a forma literária mais versátil, dir-se-ia mesmo até a mais promíscua, no sentido positivo da plasticidade que ‘promiscuidade’ pode assumir.” Assim é. Por isso mesmo, “a forma mais híbrida e adaptável da criação poética, não pode declinar a sua função deixando vazio o lugar que lhe pertence e nenhuma outra realidade até agora substitui.”
_____________
* Texto lido na apresentação
 do romance "A Noite das Mulheres Cantoras,
 (24 de março de 2011, na Casa Fernando Pessoa, Lisboa)
Tire uma cópia

1 comentário :



  1. Foi a minha estreia na leitura de Lídia Jorge e gostei:



    http://numadeletra.com/a-noite-das-mulheres-cantoras-de-lidia-75217

    ResponderEliminar