sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Depoimento * Karin von Schweder-Schreiner

Quando a Alemanha
abre um livro português

Karin von Schweder-Schreiner *

No ano passado, eu fui convidada a fazer uma leitura pública de algumas passagens do livro "O Vento Assobiando nas Gruas" de Lídia Jorge, na minha tradução. A leitura fazia parte de todo um programa cultural que teve o seu início no mês de Outubro passado e se vai estendendo até o mês de Julho deste ano, incluindo música, teatro, exposições e literatura. Tudo isto tem e vai tendo lugar na cidadezinha Gschwend no Sul da Alemanha que eu até lá nem sabia que existia, nunca tinho ouvido falar do lugar. Desde há vinte anos, naquela cidadezinha, melhor dito burgo de poucos milhares de habitantes, organizam aquele programa cultural, todos os anos com destaque em determinado país e sua respetiva cultura, para a edição atual o país escolhido foi Portugal. Assim, na parte musical incluia-se uma noite de fado, a fadista convidada era Ana Moura. A primeira das noites dedicadas à literatura foi a minha leitura, no final do mês de Janeiro apresentou-se Teresa Salema, falando sobre a "Literatura e cultura portuguesas" depois do 25 de Abril. Para Fevereiro está programada uma noite com José Riço Direitinho, atualmente bolseiro da Villa Concordia de Bamberg, cidade histórica na Baviera. A Villa Concordia, chamada de Casa Internacional das Artes, é uma instituição financiada pelo estado da Baviera que todos os anos convida artistas alemães e estrangeiros (esses todos do mesmo país) para passarem um ano na cidade de Bamberg e trabalharem juntos. Em Gschwend, também para Fevereiro está prevista uma noite de leitura do "Ensaio sobre a Cegueira" de José Saramago, uma noite muito especial porque a pessoa que vai ler é um ator cego. E acontecem casos como o do senhor que no dia seguinte à minha leitura me levou para o aeroporto de Estugarda. Ele me contou o seguinte: Há alguns anos, ele ganhou de presente de Natal o livro "Comboio Nocturno para Lisboa" do autor suiço Pascal Mercier (pseudónimo de Peter Bieri). Duas semanas mais tarde, aquele mesmo senhor comprou o bilhete de comboio e embarcou para Portugal. Desde então, todos os anos ele vai passar férias em Portugal porque ficou fascinado pelo pais e agora pretende aprender português.

Bem, falo destes eventos todos para deixar claro que na Alemanha existe sim um interesse, um fascínio pela cultura portuguesa, embora menos do que seria de desejar. O mercado livreiro alemão é dominado pelos livros traduzidos do inglês, sobretudo do inglês americano. Um autor português tem que ser muito bom para ser publicado na Alemanha, mas mesmo sendo muito bom sempre terá dificuldades em conquistar o grande público. Infelizmente, o gosto majoritário tende a consumir leituras mais fáceis, como os bestseller americanos. Mas os autores como Lídia que têm os livros publicados na Alemanha, têm um público fiel.

Eu não sou socióloga nem crítica de literatura nem agente literária, eu sou uma simples tradutora de literatura de língua portuguesa para o alemão. O meu voto tem pouco peso nas decisões das editoras em relação aos livros que elas vão publicar. Se me perguntarem quais são os assuntos, as histórias portuguesas que mais interessam ao leitor alemão eu teria dificuldades em responder. Os livros que eu traduzo são escolhidos pelas editoras, só depois de comprarem os direitos é que me procuram para me encarregar de traduzi-los. As boas editoras alemães, em geral, seguem uma política editorial que consiste não em publicar livros soltos mas sim em cultivar os autores. Quer dizer, elas procuram estabelecer uma relação contínua entre os autores/autoras e a própria editora, escolhendo, quanto à literatura estrangeira, se for possível, os melhores do país em questão. Na Alemanha, todos os anos são publicados alguns livros traduzidos do português, mas levando em conta o número das traduções do inglês e do francês, são uma minoria minúscula e – infelizmente - nunca chegam a vender muito. Dos autores portugueses, o mais conhecido na Alemanha é Fernando Pessoa. O "Livro do Desassossego" é, aliás, o único bestseller traduzido do português, até hoje vendeu mais do que 100.000 exemplares.

Na verdade, os alemães sabem muito pouco sobre Portugal e a sua cultura, eu até diria que conhecem bem melhor a cozinha portuguesa do que a literatura portuguesa. Como vocês certamente sabem, a partir dos anos sessenta do século passado, quando a indústria alemã ainda precisava de mão-de-obra, muitos operários portugueses emigraram para a Alemanha, como aliás, também muitos e até mais ainda foram trabalhar na França. Acontece que ao contrário do que os políticos alemães planejavam, em vez de ficarem alguns anos e depois voltarem para a sua terra – os alemães inventaram o termo de "Gastarbeiter", o que significa "operário convidado" ou "operário visitante" – na sua maioria, os operários portugueses ficaram de vez, fixaram-se nas grandes cidades, sobretudo no Norte. Hamburgo, hoje em dia, tem a maior comunidade portuguesa dentro da Alemanha. Bem, os portugueses ficaram, e em vez de continuarem a trabalhar nas fábricas, muitos abriram restaurantes e cafés. Resultado: Só em Hamburgo, hoje temos cerca de 40 restaurantes e mais ou menos 80 pastelarias portuguesas, e na zona do porto da cidade, existem tantos restaurantes que todo um bairro é chamado de Bairro Português. Os alemães adoram a cozinha portuguesa, a hospidalidade portuguesa e, de vez em quando, têm a oportunidade de apreciar a comida junto com a literatura, como há dois anos, quando por ocasião dos 25 anos dum restaurante, convidaram-nos a Maralde e a mim a participar dum jantar com leitura, em que as duas limos das nossas traduções. Para o evento, o chefe do restaurante compôs um menu baseado nos livros que traduzimos.

Na época em que os portugueses começaram a emigrar para a Alemanha, os alemães começaram a descobrir Portugal, sobretudo após o 25 de Abril. Assim como antigamente se dizia em Portugal que as pessoas viajavam para a Europa, muitos alemães achavam que a Europa terminava na Espanha, Portugal simplesmente não existia no mapa europeu deles. O 25 de Abril abriu as fronteiras nos dois sentidos. O que na época começou como turismo político passou a ser turismo normal, os alemães conheceram as belezas do país, a natureza, a música portuguesa, a amabilidade das pessoas, o ritmo mais calmo da vida. O fado passou a ser uma paixão dos alemães, e aos poucos começaram a interessar-se também pela literatura portugesa. Foram as obras de Fernando Pessoa, as primeiras nas traduções de Georg Rudolf Lind, depois na tradução de Inés Koebel que também fez uma revisão bem meticulosa e – sobretudo – muito mais poética das traduções já existentes, e em primeiro lugar o êxito do "Livro do desassossego" que originou um verdadeiro turismo literário a Portugal. Desde então, organizam-se viagens de grupo que vão visitar os lugares que as pessoas conheceram primeiro nos livros.

Conhecer o ambiente em que se passa a narrativa, conhecer os cenários, os lugares onde vivem os protagonistas, onde sofrem ou amam – ou, muitas vezes, as duas coisas ao mesmo tempo -, é uma grande vantagem, uma sorte para as tradutoras – que na verdade somos quase exclusivamente mulheres que traduzem livros do português. Conhecer também o autor ou a autora, é a sorte grande. Eu tive esta sorte grande ao ser escolhida para traduzir os livros de Lídia Jorge. Ao decorrer dos anos, a nossa relação autora/tradutora tornou-se em relação de verdadeira amizade. Fui conhecendo a família da Lídia, a sua casa, a paisagem da sua infância, e o conhecimento de tudo isto facilita o meu trabalho de tradutora, influencia e marca, de maneira indireta, a minha tradução. Conhecer pessoalmente a autora de quem eu traduzo os livros me permite trabalhar junto com ela. Sinto muita pena de meus colegas tradutores do inglês que nunca conseguem trocar nenhuma palavra com os autores simplesmente porque os próprios autores não o querem. Para mim, é uma atitude incompreensível em que se manifesta certo desprezo pelo nosso trabalho. A tradução literária é uma atividade solitária, somos leitoras bem críticas da obra a que damos a nossa voz, a nossa melodia linguística. Mas nem sempre acertamos o tom logo na primeira tentativa, e muitas vezes torna-se indispensável o diálogo com o autor/a autora, um diálogo que costuma ser imensamente intenso e gratificante. Eu já perdi a conta dos encontros com Lídia em que procuramos esclarecer as dúvidas que eu encontrava ao traduzir os livros dela mas sei que sempre foram encontros maravilhosos, dos quais eu regressava com a sensação de ter mergulhado bem profundo na obra dela.

De vez em quando, perguntam-me porque eu fui estudar a língua portuguesa. Eu costumo responder que a minha opção pelo português provavelmente foi motivada pela vontade subconsciente de poder vingar-me da minha família. Desde pequenina eu estava acostumada a ouvir um idioma estrangeiro em casa. É que os meus pais, embora ambos de descendência alemã, nasceram na Rússia e, portanto, falavam russo, como aliás, vários primos meus também falavam e ainda falam, mas nós, as minhas irmãs e eu, não o aprendemos. A fuga no final da guerra, em Janeiro de 1945, levou-nos para uma pequena aldeia no Norte da Alemanha, claro que lá não se podia falar a língua do inimigo. Mesmo assim, quando meus pais não queriam que nós, as filhas, entendessemos o que eles diziam eles falavam russo. E nessas ocasiões, eu sempre sentia-me um pouco excluída. Por isso, quando resolvi estudar línguas eu escolhi o português porque era um idioma que ninguém na minha família falava. Hoje, eu até estou grata por não me terem ensinado a língua russa, porque nesse caso provavelmente eu nem teria estudado português nem conhecido este país. O que seria uma grande pena.

Hamburgo, 14.02.2011
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* Tradutora da obra de Lídia Jorge para a língua alemã.
Comunicação feita no encontro
"O Nosso Imaginário Interessa aos Europeus?",
no Convento de Santo António, em Loulé,
integrado nas comemorações do 30º aniversário de “O Dia dos Prodígios”



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