Os dois lados do mundo
Lídia Jorge *
A Escola da Cabeça d’Águia era uma casa com uma porta, duas janelas e mais nada. No primeiro dia em que me levaram até lá, fiquei feliz porque ia encontrar crianças da minha idade. Elas lá estavam, divertidas, barulhentas, grandes olhos, faces magras. Também era a primeira vez que me colocavam na mão uma caneta de tinta de molhar e ela escorregou-me da mão, borrou a folha e rebolou pelo chão. Tive de gatinhar debaixo das carteiras para a encontrar. Foi então que eu reparei que os pés dos meus colegas, em grande parte, estavam descalços. Vi os seus pés pousados no chão e percebi que a turma se dividia em duas metades – os que tinham e os que não tinham sapatos. Nessa noite, procurei sapatos que servissem aos meus colegas, e em casa havia-os em várias caixas, mas de criança encontrei só um par, e eu queria encontrar botas, formatos vários. A minha mãe descobriu o que eu andava a fazer e disse-me – “Para quê tudo isso? Desengana-te, por mais que faças, nunca vais calçar toda a gente”. E assim foi. Passei muitos anos sem contar este episódio, até que desisti desse silêncio. Passado todo este tempo, a Humanidade continua a dividir-se, exactamente, nesses mesmos dois grupos – Os que andam e os que não andam descalços. Só na Literatura conseguimos encontrar sapatos para todos. Talvez essa seja uma das razões por que escrevo. Talvez escreva desde aquele dia em que a caneta escorregou pelo tampo espalhando tinta no papel e conduzindo-me ao chão do mundo.
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* Texto colocado em mural na exposição bio-bibliográfica
promovida pelo Câmara Municipal de Loulé
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