quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Intervenção * No Doutoramento Honoris Causa

Aos Professores

Lídia Jorge *

Sinto-me muito honrada por me ter sido outorgado este Doutoramento Honoris Causa pela Universidade do Algarve, a Universidade da região à qual por coração pertenço. É uma grande honra e uma grande alegria. Um momento único na minha vida. Por isso mesmo não quis vir até esta cerimónia sozinha. Quis a ela associar os meus melhores amigos, que aqui estão presentes, a quem saúdo em particular, e comigo trouxe a minha família, aqueles que têm sido ao longo dos anos os meus pilares de aço invisíveis. Fiz questão de partilhar, com os que me são próximos, o momento em que esta Universidade me acolhe, me oferece as suas fórmulas simbólicas e reparte comigo as suas insígnias. Ao caríssimo Professor Doutor Pedro Ferré, agradeço, de maneira muito especial, as palavras com as quais justificou a atribuição deste doutoramento.

Ouvindo os seus argumentos, confirmo o que eu já sabia, que a porta de entrada para este acolhimento, foi o mundo dos livros. E tomei conhecimento do valor que atribui àqueles que eu mesma escrevi. O Professor pôs em relevo o que toma pelas suas qualidades, e sublinhou alguns dos meus próprios caminhos. Sinto-me muito grata. Mas eu quero acrescentar que ninguém escreve sozinho. Boa parte do que até agora fiz, e que veio a merecer esta distinção, também foi o resultado de certos encontros e do que foi acontecendo, ao longo da vida, um pouco por acaso. Todos sabem que uma das disciplinas mais curiosas da Matemática é o chamado Cálculo Estocástico, aquele que trata, precisamente, da lei da conjectura e das probabilidades. O que significa que esse tipo de cálculo lida com as leis do acaso. Mas não sei se em semelhante disciplina existirá algum capítulo dedicado ao Bom Acaso. Se não existe, provavelmente, seria bom que existisse, pelo menos para nós podermos continuar a acreditar que o Mundo ainda tem a sua infância, podendo nós, de vez em quando, confiar inteiramente no recomeço das coisas.

Por mim, devo ao Bom Acaso o facto de ter nascido numa família de camponeses que amava os livros. Aconteceu há muito tempo. A vida no campo, então, era árdua e tudo o que não fosse a terra, ela mesma, era precário. Por essa altura, em nossa casa, a leitura constituía um momento de sonho e de evasão, era o único estímulo cultural de que dispúnhamos, mas sendo o único, aproveitámo-lo bem. O Bom Acaso fez que a minha mãe tivesse tido a ideia de reforçar essa tradição familiar, comprando-me um livro cada vez que se deslocava a esta cidade. Lembro-me daquele momento carregado de mistério, em que o livro saía do saco, e eu via pela primeira vez o título e as imagens da capa. Recordo de forma muito especial aquele dia do início de Fevereiro de cinquenta e quatro, em que nevou no Algarve. A minha mãe e a minha tia Alice tinham vindo tratar de documentação a Faro, e de regresso foram surpreendidas pelo nevão. Passámos a noite, incomunicáveis, à sua espera. No dia seguinte, já tarde, quando a queda de neve acalmou, via-as avançarem pela paisagem branca, e a situação era tão invulgar, que eu nem me lembrava do livro prometido. Mas, como sempre, a minha mãe trazia-o. Trazia o livro dentro do mesmo saco e entregou-mo como se fosse mais um. No entanto, não era mais um. Sem o saber, a minha mãe oferecia-me, nesse dia tão particular, a primeira versão a que eu tive acesso do célebre livro de Lewis Carroll. Sem fazer ideia, oferecia-me o meu primeiro Alice no Pais das Maravilhas, que haveria de me acompanhar pela vida fora, como um símbolo. E foi assim. Foi assim que a infância me fez leitora.

Mas a infância faz leitores, não faz escritores. Ser leitor é ainda continuar uma proposta, escrever já é contrapor uma outra proposta. A infância mantém o ser da criança unida ao mundo onde as forças agem por magia, onde ela e o mundo não se distinguem, onde o mundo canta e dança e fala como ela. Mas o adolescente, esse corpo desengonçado de onde parte o escritor, separa-se do mundo, descobre que ele é ele, e o mundo é o mundo, e que o mundo é poderoso, enigmático, está cheio de seduções, delícias, penas, desafios e perigos, e por isso quer descobri-los, conhecê-los e naturalmente aproveitar-se deles e vencê-los. O adolescente quer ser o herói que vence o mundo, com suas regras escondidas, e assim descobre as regras e cria as condutas da honra para poder lidar com ele, baseado em códigos. O longínquo, o estranho, o total, o escuro e os limites do absurdo são o seu território de descoberta. Por isso o adolescente parece um fanfarrão em confronto com a totalidade. Creio que é esse o espaço de confronto que os escritores prolongam ao longo da vida, tendo por base o código das palavras para atingir a totalidade do mundo, como outros criam outros códigos de outra natureza para alcançar o mesmo ilimite. Pois eu diria que também aí, o Bom Acaso veio ter comigo.

Na adolescência, eu poderia não ter encontrado os instrumentos necessários para criar o meu confronto, e poderia não ter encontrado as pessoas certas para me ajudarem a descobri-los. Mas tive-os. No Liceu desta cidade tive os professores certos, aqueles que me indicaram títulos e me emprestaram livros, professores que leram as minhas primeiras histórias, que me levaram pela primeira vez ao teatro, pela primeira vez me levaram a assistir a conferências, me levaram a ver uma primeira exposição de pintura, professores que juntavam a turma a que eu pertencia em encontros para discussão, como se fôssemos amigos. Éramos um bando. Professores que nesse tempo, em que toda a dedicação era gratuita, fizeram dos alunos as suas pessoas de família. Professores que foram mestres. Como tantos rapazes e raparigas da minha idade, eu poderia não ter tido estes professores. Mas houve mais.

Então, eu passava as longuíssimas férias de Verão no alto do nosso monte em Boliqueime, aprisionada numa casa de lavoura, e os livros estavam todos lidos. Mas o Bom Acaso fazia que ao longo desses meses intermináveis, a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian passasse por ali, e o condutor bibliotecário escolhesse por mim os livros grossos. O Bom Acaso colocou-me esses livros no regaço e eu, que não viajava, viajei e fiz-me uma pessoa da distância através deles. Viajei para a Escócia com "A Noiva de Lammennoore", para o Sul dos Estados Unidos, com "As Vinhas Da Ira", para o centro da Europa, com "A Vigésima Quinta Hora", para a Rússia dos Czares com "Guerra e paz". Lembro-me em particular do livro de Hemingway, "Por Quem os Sinos Dobram", esse romance que falava da Guerra Civil 'espanhola, e da história de Jordan e Maria, de Pablo e de Pilar, enredados naquele terrível conflito. O livro tinha de tudo, cenas de amor, violência, traição, fidelidade, e as personagens falavam como se fosse um filme. Mas o que mais me interessava era a sua epígrafe. Hemingway tinha escolhido uma passagem de uma das meditações do poeta inglês, Jonh Donne, para abrir esse livro, e as suas palavras iluminavam as minhas tardes silenciosas. Eu lia em voz alta, vezes sem conta, aquela que é uma das mais célebres epígrafes dos romances do século XX, que toda a gente já leu uma vez. Adolescente, queria ter sido eu a escrever assim - Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do Continente, uma parte da Terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti. Li-a vezes sem conta, até decorar. Hoje em dia, estou em crer que a epígrafe de Por quem os Sinos Dobram nunca deixou de estar presente nos momentos decisivos que me levaram, posteriormente, à escrita e à publicação. Tudo isso aconteceu depois de uma experiência a olhar para uma guerra muito particular, a guerra colonial em África, depois de ter tido a ideia de que havia aprendido com ela a formular algumas das perguntas fundamentais que justificam os livros. E foi assim.

Mas o mundo mudou.

Passados todos estes anos, penso nos jovens de hoje, e calculo como não acharão esta história antiga e bizarra. Penso que dificilmente poderão compreender que escassas décadas atrás das suas vidas, os desafios em tomo da leitura e da cultura fossem histórias de escassez. Porque as histórias dos adolescentes e jovens de hoje nada têm a ver com escassez, as suas histórias são de abundância de meios, e excesso de oferta. Nós lutávamos para encontrar um objecto, os jovens de hoje lutam para escolher entre os objectos. Os jovens da minha geração precisavam de inventar os espaços da imaginação. Os jovens de hoje encontram o espaço atravancado de propostas. O significado das coisas, hoje, está escondido debaixo dos seus acessos. Em tomo de cada objecto de cultura, há hoje milhares de caminhos que se bifurcam, infinitamente se bifurcam, para utilizar a imagem de Jorge Luís Borges, ao contrário da linearidade que antes nos ofereciam. Que bom ser criança, hoje, no meio da abundância de tantos objectos mágicos. Que bom ser jovem leitor, quando os livros estão por toda a parte. Que bom termos, hoje, todos os meios à nossa disposição para escrevermos todos em simultâneo. De facto, entre as nossas gerações, são infinitos os elementos que nos distinguem.

E no entanto, há um elemento que nos aproxima, e nos toma semelhantes - Os jovens de hoje precisam, como nós precisámos, de serem visitados pelo Bom Acaso. Precisam de fazer bons encontros com quem os faça desembaraçar da profusão dos meios, para que encontrem em vez do adorno, o significado. Em vez da encenação, os textos. Em vez do resumo em duas linhas, e da profusão de imagens, e da opinião superficial cruzada, precisam de encontrar os próprios livros. Precisam de quem os ajude a des-ocultar o que é precioso e indispensável, e está escondido sob a morraça da superficialidade. Claro que a vida e a surpresa, em parte, repetem-se sempre. Hoje em dia, quando encontro jovens que gostam de ler, e em geral são os melhores estudantes das Universidades, sempre tento saber o que aconteceu nas suas vidas de equivalente a 4lice no País das Maravilhas caminhando sobre a inusitada neve, ou à coincidência entre uma frase de um poeta inglês do século XVII lida em voz alta e o sino da minha aldeia, na segunda metade do século XX. Que coincidências, que Bons Acasos aconteceram? Pois quando os jovens leitores falam desses seus encontros com os livros e a leitura, e por vezes com a sua própria escrita, em geral, coincidem comigo num ponto. O Bom Acaso teve a ver com uma pessoa, muitas vezes com uma pessoa de família, mas a maior parte das vezes, teve a ver com um professor. Um professor concreto, com uma biografia. Uma pessoa. Não estamos tão distantes assim.

É por isso que, neste momento, em que a Universidade do Algarve me outorga este Doutoramento Honoris Causa, porque penso nos jovens, penso em particular nos Professores. Nos Professores das várias áreas do Saber. Já que todas as áreas do Saber têm a sua própria poética e no seu conjunto são um todo. Não existe nenhum ramo do Saber digno desse nome que não tenha a sua poética que é parte de uma Poética mais ampla e comum. Hoje, felizmente, toda a gente o tem como dado adquirido. Aliás, nesse domínio, nada tenho a insinuar diante de quem sabe mais do que eu. Mas penso na figura tutelar dos Professores junto dos seus alunos, como o Bom Acaso, e em particular nos Professores das Humanidades e nos Professores de Português, aqueles que em princípio mais estão ligados a esta causa, e melhor precisam de compreender a delicadeza do momento que passa. Sei que mais não faço do que repetir o que é matéria de consenso entre todos, mas talvez não seja errado reforçar aquilo que é a minha própria convicção. Por um lado, a convicção de que neste início de século as Ciências estão florescentes, e a cada momento que passa evoluem de uma forma extraordinária certamente, para nossa felicidade. Que, também nunca como agora se falou tanto na importância da Leitura e das Artes na formação integral. Mas também nunca como agora está patente a falta do seu abraço. A falta de aproximação entre aquilo que usualmente se chamava, para simplificar, a aproximação entre as Duas Ciências. A minha convicção é que o mundo partirá numa direcção qualquer inesperada se acaso os dois ramos do Conhecimento não fizerem o seu abraço. Se acaso as várias Ciências não integrarem a Leitura e as Artes como a forma de conduzir à escuta interior do coração do próprio e dos outros, esse local escondido onde tudo, afinal, vai bater, quer se queira quer não. E por isso penso em especial nos Professores das Humanidades e nos Professores de Português e dedico-lhes este Doutoramento, pela responsabilidade que lhes cabe na alteração de um paradigma. Uma alteração que lhes permita inscrever a sua ciência, ao mesmo tempo tão indispensável e tão precária, no mundo moldado pela tecnologia cruzada com a contabilidade, a que se junta a publicidade aplicada, empobrecendo de forma tão evidente as sociedades de hoje. Penso no salto difícil que terão de promover, insistindo no mergulho interior dos seus alunos sobre os livros de Literatura a mais densa das Artes, quando todos os apelos são contrários. Dedico-lhes para que não desistam de contribuir para uma harmonia, que afinal é por todos desejada. Não desistam de promover, caso a caso, o Bom Acaso. Esta interpelação não é só minha. Lembram-se sem dúvida das palavras do velho poeta, criado por Wim Wenders, no filme As Asas do Desejo. Também ele, esse velho Homero, perguntava – Devo desistir? Se eu desistir, então a humanidade irá perder o seu contador de histórias. E com ele, também ela, a humanidade, irá perder a sua infância.

Senhor Professor Doutor Pedro Ferré, depois de o ter escutado a sua Laudatio, quero acreditar nas suas palavras. Fazendo fé nelas, acredito que represento no mundo das Letras alguma coisa, mas ainda não sei se é muito, se é pouco. E talvez essa medida nem seja importante. O que sei, isso sim, é que hoje, ao atribuírem-me este Doutoramento, como já aqui foi outorgado a um outro Escritor e a um Cineasta, isso significa que esta Academia no seu conjunto, não quer que os narradores se afastem do seu círculo. Não quer que o Conhecimento que nesta casa se produz seja um saber sem infância e sem adolescência, essa idade que empurra o jovem para o campo da audácia e o adulto para o campo do empreendimento. Ora não querer que os narradores se afastem é um factor de esperança nos caminhos que se abrem para uma Universidade virada para o Futuro.
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* Intervenção na Universidade do Algarve
por ocasião do Doutoramento Honoris Causa
a 15 de dezembro de 2010

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