sábado, 1 de agosto de 2009

Depoimento * Essa página tal de Marguerite Yourcenar

Duas horas de leitura
que duram toda a vida

Última Página de um Romance
Golpe de Misericórdia
de Marguerite Yourcenar

Estendeu-me um revólver; peguei no meu, e dei automaticamente um passo em frente. Durante este tão curto trajecto, tive tempo para repetir dez vezes a mim mesmo que Sofia talvez tivesse um último apelo a fazer-me, não sendo esta ordem senão um pretexto para o fazer em voz baixa. Ela, porém, não mexeu os lábios; com um gesto distraído, tinha começado a desabotoar o alto do casaco, como se eu fosse apoiar o revólver à altura do coração. Devo dizer que os meus raros pensamentos iam todos para aquele corpo vivo e quente, que a intimidade da nossa vida em comum me tornara quase tão familiar como o dum amigo; e senti-me tomado duma absurda pena pelos filhos que aquela mulher teria podido dar à luz, e que teriam herdado a sua coragem e os seus olhos. Mas não é a nós que cabe povoar os estádios nem as trincheiras do futuro. Um passo mais pôs-me tão perto de Sofia que teria podido beijá-la na nuca ou pôr a mão sobre o seu ombro agitado por pequenos estremeções quase imperceptíveis, mas já só via dela o contorno dum perfil perdido. A sua respiração era ofegante; agarrei-me à ideia de que teria desejado acabar Conrad e que era a mesma coisa. Disparei desviando a cabeça, quase como uma criança assustada que faz detonar um petardo na noite de Natal. O primeiro tiro não fez senão esfacelar uma parte do rosto, o que me impedirá para sempre de saber qual a expressão que Sofia teria adoptado na morte. Ao segundo disparo, tudo ficou consumado. Pensei, primeiro, que ao pedir-me que me incumbisse desse serviço, ela julgara dar-me uma derradeira prova de amor, e a mais definitiva de todas. Compreendi, depois, que apenas quisera vingar-se e legar-me remorsos. Tinha calculado com justeza: sinto-os por vezes. Com mulheres destas, cai-se sempre no laço.

in edição Dom Quixote |Biblioteca de bolso| 2003,
tradução de Rafael Gomes Filipe

Lídia Jorge *

Dog Women, de Paula Rego
Muitos são os leitores que associam o Verão a leituras com finais suaves. Leitores que preferem colocar na sua mochila de viagem histórias de cujas últimas páginas se desprendem praias douradas, beijos na boca, ou sentimentos da História rumando à metafísica da espécie. Ora nada disso acontece em “Golpe de Misericórdia”. Esse livro, que Agustina Bessa-Luís classificou como uma educação sentimental para veteranos, só é aconselhável a quem goste de histórias correndo sobre o fio da navalha e ame os finais em que a voz da interpelação deixa ao leitores, para sempre, um arrepio na espinha.

Por mim, pelo menos, é esse o efeito que me produzem as últimas linhas deste livro de Yourcenar escrito em 1938, como desfecho duma história supostamente acontecida, vários anos antes, no rescaldo das lutas civis entre os vermelhos e os brancos, na zona da Curlândia, uma história onde se encontra o ADN remoto da divisão que viria a separar o mundo em dois, ao longo de todo o século XX. Só que neste livro, esse pano de fundo político não passa de um trapo estendido sobre o qual se imprime o que verdadeiramente importou à sua autora e nos importa a nós, seus leitores – A iluminação, tão profunda quanto é possível atingir em Literatura, sobre dois caracteres em confronto. E é nesse plano, os da dimensão relacional das personagens, que este final é um dos mais belos e surpreendentes da narrativa contemporânea.

Por mim, os anos passam, os livros vêm e vão, alguns finais ficam, mas de entre todos, eu sublinho aquele que me oferece esta imagem. A imagem de Sofia de Reval a desabotoar a alto do casaco para que Eric von Lhomond , o amigo íntimo do seu irmão, apague para sempre, da sua cara e do seu corpo, a experiência de um amor duma dimensão inusitada. Sofia é uma das heroínas mais impressivas da Literatura Ocidental. E Eric, no papel de cínico, é sobretudo a história duma voz partida em duas. É verdade que durante este final não se refere o início do livro, nem o pé entrapado que este oficial contador da sua história em voz alta estende sobre uma cadeira, na estação dos caminhos-de-ferro duma cidade de Itália, nem as figuras dos seus destinatários de narrativa, os seus sonolentos companheiros de refrega, estão presentes. Mas o leitor atento não esquece – até porque o romance reproduz a urgência de contar de alguém supostamente movido pelo remorso – que se está perante uma madrugada de vigília, esse momento em que os seres amados regressam ao nosso convívio, quer estejam vivos quer estejam mortos. O mais tocante, neste abraço entre Yourceanar e o seu personagem homem, está naquele ponto em que Eric sonha, por um instante, como Sofia mereceria ter vivido e ter filhos com os seus olhos. E mesmo assim a sua mão não treme. Há uma brutalidade neste livro em forma de relâmpago que ilumina para além da sua luz. Lembro que se trata de um livro breve. Entre a primeira página e a última, vão apenas duas horas de leitura. Duas horas que duram para toda a vida.

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* Publicado no Jornal de Letras, 1 de agosto de 2009
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