Lídia Jorge
Vem, pequeno gafanhoto, pousa as tuas patas sobre a brancura desta folha e mostra a tua natureza diante dos meus olhos. Mantém-te quieto enquanto duram estas breves linhas para que eu te conheça de perto, melhor do que ninguém. Sei que ao mudarmos de língua, tu mesmo mudas de sexo. Na minha língua és macho, e o teu nome traz consigo uma maldição, pois gafanhoto lembra aquele que traz a gafa, a miséria e a doença, enquanto que em francês assumes a forma de um belo nome que salta, e és fêmea. Não importa, atravessas a tradução, e ficas com outra ressonância, mas para mim, tu serás sempre aquele que me leva pela mão até às regiões do desconhecido. Somos um casal perfeito, e da minha fidelidade, não tens de que te queixar.
Outros te reduziram à dimensão da iniquidade e do desmazelo. Não deves dar o teu perdão a Nathanael West, autor de “O Dia do Gafanhoto”, nem ao realizador John Schlesinger, muito menos a Winston Churchill que te associou aos tristes dias da vacuidade. Para não falar das pragas do Egipto, do anjo do Apocalipse, ou de São João Baptista, esse anoréctico que se alimentava dos teus irmãos untados com um pouco de mel. E tu, frágil, mudo, airoso, sempre cumpriste o teu destino, avançando pela História fora, sem te importares com a maldição. Mas ao contrário de todos os que te amaldiçoaram, bem sabes como sempre te tratei bem desde que, na infância, te descobri. Como te entreguei a minha mão, como corremos os dois por entre os colmos de trigo, como te capturei dentro de caixas de fósforos, como te desenhei e te amei. Bem sabes como ocupaste o frontispício de um dos meus livros, e aí te elevei ao lugar de rei. Bem sabes como aí te multipliquei por biliões, e deles fiz grandes nuvens que voaram por cima das cidades de África. Tão espessas que nelas tu te fizeste verde, e tudo ficou verde, incluindo a luz dos candeeiros em torno do quais vocês rodopiaram como esmeraldas voadoras. Não tens de que te queixar. Mas eis que chegou a hora de me recompensares. Chegou o momento de me dizeres para que lado deve voar a nuvem de que faço parte. Eu queria escrever esse recado no frontispício da minha autobiografia, e só tu o sabes, querido gafanhoto do deserto, só tu me podes dizer a verdade.
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* Publicado por Lexique Nomade n.° 2
(co-edição Le Monde/Villa Gillet/éditions Christian Bourgois
- maio de 2009
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