Manoel de Oliveira
Lídia Jorge *
Tenho dificuldade em definir o que seja cinema puro, e no entanto, quando ouço falar do conceito, associo-lhe de imediato três nomes – Akira Kurosawa, Andrei Tarkovsky e Manoel de Oliveira. Reconheço-lhes por igual a mesma capacidade de transmitir uma personalidade criadora, a mesma intensidade dramática com lógica de palco, e a mesma demanda ontológica através da narrativa literária. E tal como acontece com o mestre japonês e o russo, reconheço que Manoel de Oliveira possui um universo poético inconfundível, só seu, que foi capaz de impor ao mundo do cinema contemporâneo. Por comparação, o realizador português, talvez só não alcance a mesma porosidade universal daqueles seus congéneres, quando se enreda em demasia na retórica da portugalidade e se abandona a uma espécie de didáctica sobre o destino e outros conceitos próprios da dissertação. É por isso que a associação com Agustina Bessa-Luís sempre resultou tão benéfica.
É verdade que Manoel de Oliveira se aproximou de vários escritores universais, designadamente autores europeus canónicos, e nesse aspecto também o realizador português foi capaz de des-provincianizar o nosso cinema. Mas a meu ver, de forma consequente, só Agustina lhe emprestou a carne e os ossos necessários para manter em cena, do princípio ao fim, personagens com interioridade avassaladora e recorte exterior inesquecível. E o cinema, mesmo o dito puro, também é isso. É essa consistência oriunda da ficção romanesca de Agustina que distingue o fascínio des-conexo de “Os Canibais” ou de “A Divina Comédia” do sentimento de totalidade, e de aproximação da arte absoluta, criado por “Vale Abraão”, “O Mosteiro” ou essa peça de declamação extraordinária que é “Party”. Mas devo dizer que só descobri Manoel de Oliveira com “Francisca”, e um pouco por acaso. Até então, Manoel de Oliveira afigurava-se-me ser uma espécie de lenda remota criada contra-corrente. “Amor de Perdição” tinha-me parecido apenas uma deslumbrante teimosia sem grande consequência. Paguei-as caras – Se hoje em dia não conheço tudo o que Manoel de Oliveira filmou, é só porque este realizador, tal como a sua parceira de ficção, Agustina Bessa-Luís, produzem sem parar, como é próprio de quem descobre que o seu talento é de oiro, e sabe que os outros também o sabem. Por isso mesmo, nas justas homenagens que lhe estão a ser prestadas, por mim, dispenso qualquer referência à sua idade. É assunto que não me interessa para nada. Do ponto de vista humano, o homem que se senta junto de nós, e fala da sua arte com a forma notável como o faz, é apenas um miúdo de “Aniki-Bóbó” que cresceu demasiado e está produzindo com a velocidade própria dos grandes criadores. E o regozijo é dele mesmo, e nosso.
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* Para livro de homenagem a Manoel de Oliveira ( 2009)
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