Passagem por Jerusalém
Lídia Jorge *
Em Jerusalém, a História é tão eléctrica que uma simples folha de papel a voar pode assumir a categoria de um acto simbólico. A rapariga soldado a que me refiro caminhava entre os companheiros, curvada sob o peso da mochila e da metralhadora, e parou diante da folha cor-de-rosa que se encontrava no chão. A rua era íngreme, os rostos do grupo armado, sob o esforço da subida, estavam descidos, e foi necessário um pequeno desvio para apanhar o papel. A rapariga saiu do trilho, recolheu o papel, dobrou-o, encostando a arma à bochecha, enfiou-o na algibeira e continuou na fila, subindo a colina de pedra. Aparentemente, ninguém deu por nada, o pequeno desvio não significava nada, era apenas uma mulher soldado adolescente, retirando do chão uma folha de papel quadriculado. Mas se eu tivesse de escrever sobre os sinais das balas que estão marcadas na porta de Sião, a partir daquele instante, já não iria mais começar pela crónica dos dias de guerra de 1948, teria de começar pelo gesto anódino duma adolescente armada, levantando uma folha daquele chão como se fosse outro chão qualquer.
É que entre a história do sagrado e do profano, existe um terceiro campo, mais amplo e mais difuso, o campo do anódino, constituído pelo somatório de gestos onde se encontra o mais inqualificável do comportamento humano. É esse o espaço que me interessa, esse que não cabe em nenhum tipo de História, ainda que corra a seu lado como seu outro irmão. Aliás, anódino , segundo a raiz primitiva, significa isento de dor, qualidade daquele que acalma a dor, ou pelo menos não a produz. Só num segundo momento, anódino se transformou em sinónimo de banal, insignificante ou imprestável. E isso é de ter em conta, porque profano é concebido como oposição a sagrado, quando se disputam no mesmo plano. De resto, sagrado e profano podem conviver abraçados no mesmo domínio, um e outro relacionados com a mesma vocação de totalidade. Mas quando passamos a falar de anódino, aí já estamos claramente fora desse tal abraço, aquele que conduz aos rios de sangue derramados pela disputa do absoluto. Sob o signo do anódino, pomo-nos a falar uns com os outros do simplesmente humano. E esta é a paisagem predilecta dos viciados pelo significado do transitório, que é o campo do literário, e dentro dos géneros que o compõem, aquele que mais se arruma rente à banalidade do real, que é o romance. O romance, ou a narrativa que nasce, por exemplo, duma folha de papel volante, à qual se junta um rosto, semelhante a outros rostos, e uma data no tempo doméstico, à medida duma semana – Sobre aquele instante, um qualquer visitante viciado no sentido do anódino teria escrito - “Era uma vez uma rapariga armada, que apanhava do chão uma folha solta, enquanto o seu pelotão estava subindo a Colina do Templo acima, na cidade de Jerusalém...” E no átrio da memória, representar-se-ia a cena em silêncio, sem palavras sagradas, sem Deus, sem relâmpago, apenas a folha de papel cor de rosa que a rapariga dobrou e enfiou na algibeira da farda, sobre o lugar do coração.
Aliás, esse fora precisamente o tema da conversa na noite anterior. Segundo os leitores especiais que haviam preenchido aquele serão de sexta-feira, o poder singular dos escritores israelitas estaria na capacidade de fazerem coabitar a memória das narrativas sagradas com as vivências do quotidiano comum, levando por diante a tarefa de criar um espaço de lirismo construído sobre a dúvida e o efémero, esses frágeis materiais do relativo que conduzem à compaixão. Nessa perspectiva, Amos Oz, David Grossman, Yehudit Hendel, David Vogel, Jacob Shabatai ou B.Yehoshua, e seus milhares de páginas publicadas sobre vidas comuns e suas sombras indefinidas, continuam a tecer um dique tão poderoso quanto versátil em torno do indizível, por oposição ao poder absoluto dos Grandes Livros . E a propósito das narrativas fundadoras, totalitárias, os nomes dos escritores mais recentes, como Etgar Keret, o jovem autor de O Motorista de Autocarro que Queria ser Deus , eram particularmente visados. Mas os jovens israelitas, autores de histórias mínimas, semi-fantásticas, colhidas no lastro do quotidiano banal, não estariam a ser porta-vozes duma tendência que erradica de todo, ou quase todo, as marcas do lugar e do tempo, para se transformarem em instrumentos duma nova escrita global, aquela que por definição ficciona longe do espaço histórico e da alma do lugar? Aliás, não estaríamos em breve, todos nós, perante narrativas de todos e para todos os lugares, uma espécie de narrativa pantópica, alimentada pelo mesmo imperativo de uniformidade que faz das laranjas e dos tecidos objectos saídos fora da estações do ano e das marcas da região? - É possível, mas se essa questão da viagem incolor dos textos tem alguma pertinência, ela não se levanta em relação aos autores israelitas, tão pouco em relação aos jovens como Etgar Keret, cujo humor e ironia continuam fortemente plantados no chão da sua cultura. Se a questão é de perda de espaço do romance como género, e da Literatura como expressão, e logo de diminuição do poder do dique em torno da ortodoxia, é preciso ter em conta que a vida dá outras voltas, e será salutar pensar nelas duma outra forma.
Então, de súbito, Jerusalém pode fazer lembrar o síndroma de definhamento dos géneros, e em particular o do romance, e a esse propósito vale ter em conta como há vinte cinco anos, por exemplo, Vergílio Ferreira, um dos escritores portugueses do século XX que melhor o cultivou, em resposta a aos jovens autores que então surgiam, manifestava as maiores reservas em relação ao género. Àqueles que nessa altura lhe apareciam sobraçando novos originais, o autor da Aparição perguntava com admiração por que motivo desejavam publicar romances, por que não enveredavam antes pela poesia, pelo teatro, pela narrativa para cinema e televisão, dissuadindo-os com fortes argumentos e emoção sincera, como se estivessem os jovens principiantes a apostar a vida em cavalos estropiados de que se tornava urgente salvar. Na verdade, era sua convicção de que o romance já então era um género morto ou pelo menos moribundo, que se tratava duma forma de representação do Mundo desadequada dos questionamentos contemporâneos, um género fortemente açoitado sob os ingredientes dispersivos da modernidade. Estávamos na década de oitenta, e Vergílio Ferreira via o futuro que ainda nos separava do fim do século como um tempo inchado por desafios que eram a antítese do romance, tal como ele o entendia, uma narrativa semi-ensaística sobre o destino privado dos homens, um parente imaginoso da área da Filosofia. Aliás, Vergílio Ferreira augurava a morte natural do romance, por motivos antropológicos, mas recolhia os sintomas sobretudo em duas espécies de evidência. - Na fartura da publicação – expressão do seu gosto – e no facto de as mulheres terem chegado em peso à ficção, aumentando-lhe a abundância. Numa e noutra circunstância, ele via o grotesco expandir-se, o grotesco das historietas reprodutoras da vida real aumentar, o grotesco da exposição autobiográfica sem outro significado que a exibição pessoal instalar-se. E esse seria o garrote da sua morte porque seria o recuo até à sua mais afastada arqueologia. Mas passados estes anos, se a descrição que fazia é quase justa, os sintomas de definhamento que imaginava não lhe vinham apensos.
Só entre nós, basta pensar que nos vinte cinco anos que se seguiram, não só apareceram romances como Memorial do Convento, Balada da Praia dos Cães, ou Fanny Owen - para só falar de alguns dos imprescindíveis daquela década - como também o próprio Vergílio posteriormente publicaria Para Sempre , e mais três grandes títulos que se lhe seguiram, um outro póstumo, além de diversos projectos pensados para o futuro. Para não falar duma vintena de romances escritos por diversos autores, publicados ao longo destes vinte cinco anos, e que entretanto se tornaram inseparáveis das experiências das nossas vidas privadas e até das nossas mitologias colectivas. De facto, o romance não só não morreu como se encaminhou para outros horizontes e assumiu novos formatos. Mas será que Vergílio Ferreira se enganou completamente?
De algum modo, acertou ao lado. Digamos que a proliferação em quantidade é um facto, e não carece de comentário ou explicação, porque a quantidade só por si é um índice contraditório em relação ao valor efectivo do que verdadeiramente conta. Porque razão a quantidade só por si seria sintoma de decadência? Apenas exige mais paciência na escolha ou tempo na decantação. Também é verdade que as mulheres recém-chegadas à escrita da narrativa, se entregaram em força ao campo do romance e aproveitaram o seu formato para através dele publicarem os seus segredos, com a mesmo ímpeto com que os marinheiros alfabetizados do século XIX se entregaram à narrativa das suas viagens aventurosas ao longo dos outros continentes. É verdade que nas rotas de marear interno, a exibição directa da intimidade passou a ocupar um espaço considerável, como se a hora de Laclos e Sade domésticos saídos do século XVIII nos tivesse caído de novo no sofá. Hoje em dia, ninguém estranha que do meio de dezenas, ou centenas dessas narrativas, numa cidade de Europa, sobressaia ao cimo duma grande livraria o retrato duma escritora de língua francesa anunciando a sua obra - Leia este romance. Nele, a autora conta tudo o que se passa entre os seus lençóis... Parece ser verdade que o autobiografismo, resultado da convicção de que toda a experiência de vida dá um livro, apossou-se de grande parte dos cidadãos, como um fenómeno natural de combater a anomia. Mas não foi a quantidade nem determinada feminização da narrativa que têm descredibilizado o romance. Tal como previa, tem sido a invasão do grotesco que degradou a reputação do romance, não por si mesmo - o grotesco é apenas a degenerescência da harmonia - mas pelo oposto que ele reclama. O risco, porém, é de outra natureza, paradoxal e não previsto. É que na verdade, quanto tudo se torna grotesco, facilmente tudo se transforma em sagrado. Como se sabe, o analógico não convive bem com o lógico, aquele devora este, e sob o ascendente do irracioanl, facilmente se regressa ao mundo primitivo, em que tudo o que é olhado é visão, e todo aquele que tem um vislumbre é visionário. O fenómeno do O Código da Vinci e seus sucedâneos é apenas o rosto triunfante duma cadeia que se vinha a desenhar, em que primitivo e primordial aparecem confundidos. Ou de outro modo, Vergílio Ferreira, por razões diferentes das que apresentava, acertou a seu modo, mas infelizmente não teve tempo de experimentar a grande surpresa, a surpresa de perceber que no espaço do romance, o lugar do anódino significativo foi assaltado pelo exotérico, essa água-furtada do religioso e do sagrado.
Mas as coisas são como são, e em Jerusalém a questão nada tem de fútil. Como se sabe, ali três Livros Sagrados entrelaçam as páginas por cima das cúpulas de pedra, e nem sempre houve lugar para virá-las todas ao mesmo tempo. Os recentes ciprestes que unem as fachadas parecem dizer que Deus só falou uma vez, e as divergências apenas resultam das cópias sucessivas dessa única fala. Perigoso mesmo até ao risco de morte é que as divergências sejam motivo, ou pretexto, para o desentendimento. Como em nenhuma outra cidade, em Jerusalém, cidade que transporta o sinal da paz no seu nome, se resume a sorte guerreira da Terra inteira. Sobre essa questão, Denise, guia experimentada e proprietária duma livraria, convidada por Miriam, tem uma metáfora e uma onomatopeia preparadas. Denise conhece os cantos da cidade e os transeuntes, os vendedores de velas, os mendigos verdadeiros e os falsos. E a melhor loja árabe onde se vendem essências. É preciso ouvi-la. O seu carácter é forte e as suas mãos, vitais. Denise coloca uma mão sobre a outra e provoca com elas um ruído de espada ou de máquina. Olha na direcção do Monte das Oliveiras e fala mais ou menos assim – “Tudo isto começou há muito tempo - Primeiro vieram os assírios que incendiaram e destruíram o Templo de Salomão, e tac, tac, tac, abateram-se sobre toda a cidade. E então reconstruiu-se a cidade. Depois veio Alexandre o Grande, e tac, tac, tac... Em seguida reergueu-se a cidade. Depois vieram os romanos, e tac, tac, tac ... Depois Herodes o Grande refez outra vez a cidade. Em seguida veio o imperador Tito e tac, tac, tac, tac, sobre a cidade e o templo, e não deixou pedra sobre pedra. Tac, tac, tac. Veio o imperador Adriano reconstruiu a cidade. Depois veio Constantino e fez dela uma cidade santa, mas logo vieram os muçulmanos, tac, tac, tac, e ocuparam-na. E a seguir vieram os cruzados da Europa para a libertarem. Durante oitenta anos, os santos cruzados aspergiram sangue sobre as pedras de Jerusalém, tendo sido tudo bem picado, tac, tac, tac, durante oitenta anos. E finalmente veio Soliman, o otomano, que reconstruiu as muralhas sobre as quais nos encontramos. O tempo passou, e tac, tac, tac..”
É assim que Denise explica, irónica e sábia, as suas mãos enérgicas a imitarem o som do martelo-pilão, o grande instrumento musical que acompanha desde sempre a dança da História.
Descemos então a colina alteada pelos sucessivos acrescentos das cidades sobre as cidades. A ideia é que ainda agora a Pré-história dos homens não acabou, ainda estamos em luta pelo número de páginas sagradas que cada Livro contém, estejamos onde estivermos, o nosso Livro é sempre aquele que melhor reproduz a fala. É por isso que, em Jerusalém, a imagem duma rapariguinha soldado que por um instante pára, desvia a metralhadora da cara, e levanta do chão um papel já pisado, dobra-o e meteu-o no bolso, brilha como uma estrela duma outra natureza, na luz do dia que sobe. – Porque precisaria a rapariga soldado daquela folha? Iria escrever nela alguma mensagem? Lembrar-lhe-ia algum recado por que havia esperado e não teria vindo? Vestida de verde caqui e de cabelo amarrado, teria visto naquele pedaço de papel o início duma sucessão de palavras que lhe faltavam? Lembrar-lhe-ia pela cor, as rosas do jardim da sua casa? Lembrar-lhe-ia o seu urso de pelúcia? O seu primeiro amor, o seu último brinquedo? A sua primeira narrativa, o seu terceiro poema? - Um mundo de conjecturas se inicia, ali, onde o anódino alcança o sentido do íntimo humano, e nós ficamos desarmados uns diante dos outros, semelhantes e unidos. É sobre isso, sobre essa solidão habitada pela imagem do insignificante, que é preciso escrever durante toda a vida, conforme se confirma nas ruas de Jerusalém.
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* in JL - nº 899 (16 a 29 de março de 2005)
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