Os anos do cravo
Lídia Jorge *
Falem-me dos Anos 70 e eu deixo de estar nesta casa onde me refugio para escrever os livros, e de viver neste tempo com sua própria luz e sua própria sombra, e regresso àquele dia em que eu tinha sonhos nítidos na cabeça e trazia ao colo os meus dois filhos de berço. Nesse dia, eu regressava da Costa Oriental de África, e era apenas uma jovem rapariga que fazia parte dum grupo que se deslocava dum lugar para o outro levado pelos acontecimentos. O avião, um Jumbo fretado para o efeito, trazia de Moçambique alguns daqueles que depois viriam a ser os primeiros retornados da descolonização portuguesa. Mas nessa altura, de entre as mulheres e as crianças entaladas no meio de sacos e haveres, nenhum de nós poderia saber os nomes que o futuro reservava para designar aqueles que se deslocavam sem saber para onde.
Era então Setembro de 74, a Revolução apenas tinha cinco meses e os acontecimentos ferviam pelas ruas. Aquilo que acontecia em Lisboa era uma espécie de euforia impossível de esquecer ou minimizar. O golpe militar tinha-se dado sem derramamento de sangue, e apesar dos muitos atropelos, eles eram mínimos, quando se pensa que atrás da mudança havia uma velha crisálida de cinquenta anos que tinha fossilizado, no interior da casca, praticamente todas as estruturas incluindo as mentais. A Revolução estava na rua, a bandeira portuguesa flutuava nas edições estrangeiras dos jornais. O país tinha-se transformado numa espécie de palco de ensaio de forças divergentes de potências estrangeiras. No meio da contradição, a imagem do cravo vermelho enfiado no cano duma espingarda era um símbolo demasiado lacónico para a esperança sem medida que invadia as praças. Não era possível esconder a alegria. Para quem era jovem e tinha sonhado com um Portugal liberto de ditadura, sonhado com a democracia representativa, e a aproximação à cultura livre europeia, percebia-se que o momento decisivo tinha chegado. No meu caso, que tinha vivido o 25 de Abril à distância, depois de tanto o ter desejado, regressar naquele Jumbo, significava vir ao encontro dum espaço onírico convertido em país real.
E no entanto, aquele avião, que havia partido ao cair da noite do aeroporto de Maputo, anunciava a relação mais complexa que a Revolução iria criar – O seu voo anunciava o início tardio da era pós-colonial falada em língua portuguesa. Dramaticamente demasiado tardio para todos os lados. Eu sabia-o muito bem. Na estrutura militar com que me tinha relacionado, os meus olhos tinham sido duas espias contra uma guerra injusta que se desenrolava fora do tempo, nas várias frentes daquele que fora o velho Império Português. Mas naquele xadrez de que na altura ainda só conhecíamos o encanto, não conhecíamos a violência, nós três regressávamos ocupando apenas uma cadeira no Jumbo, e representávamos a força que batia em retirada. Pessoalmente, batia em retirada, cheia de sonhos na cabeça, em nome da paz com vinte cinco anos de atraso.
É sabido que cada época se define sobretudo pelos sonhos que engendra, mais do que pelos acontecimentos que a tecem. Um dos sonhos que eu alimentava, como jovem da minha geração, era poder conhecer as independências dos vários países emergentes que a revolução reconhecia como primeiro dado. Por mim, imaginava nações tranquilas, a caminho da maioridade política, e do desenvolvimento humano. Imaginava que esse caminho seria já e de imediato. Mas assim não foi. O Jumbo que nos trouxe de volta, era uma espécie de amostra antecipada duma ferida aberta por longos anos, movida pelas guerras civis que se seguiriam depois. Os sonhos adiados, década após década.
Mas agora volto para trás e penso nesses dias de Setembro de 74. O momento mais marcante fora sem dúvida aquela cesura feita de bandeiras vermelhas nas ruas de Lisboa e de militares abraçados ao povo, e essa imagem ofusca tudo o resto. O para trás separado do que veio à frente. Depois, com o passar dos anos, entornámos sobre a lembrança mais decepções do que proveito, como é humano e de todos os tempos. Seja como for, o que de mais importante sobejou dessa década de cravos vermelhos é sem dúvida a constatação de que há sonhos justos que são realizáveis. Quem teve a adolescência ou a juventude nessa década, em Portugal, sabe que é possível os homens unirem-se e conspirarem contra a ignomínia, mesmo em situação adversa. Sabem que muitos deles o podem fazer com generosidade, sem reivindicarem o seu nome em lugar nenhum dos livros, e sem sonharem com estátuas onde os pombos se albergam de noite. E isso é acreditar na Humanidade. Muitos dos portugueses dessa época, que neste momento começam a ficar velhos, permaneceram ingénuos. Eu penso nesse tipo de crença que se ganha para sempre, quando imagino aquela viagem atribulada entre Maputo, Luanda e Lisboa, e me lembro de ter chorado de emoção por ver ao vivo os grafitti da liberdade, que eram descritos pela rádio, aos gritos, num tempo em que nesses países de África a televisão ainda não tinha chegado. Entre o aeroporto da Portela e a Baixa, com dois filhos ao colo, a caminho da Residencial América, chorava de alegria. E no meio de todas as contradições e desavenças que se seguiram, tantas demoras e heranças que perduraram sob os tapetes, talvez esse tenha sido um dos dias mais felizes da minha vida.
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* Texto incluído na coletânea "La Nuova Narrativa in Lingua Porttughese"
publicada por La Nuova Frontiera (2006), Itália
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publicada por La Nuova Frontiera (2006), Itália
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