quarta-feira, 13 de outubro de 2004

Intervenção * Na Universidade de Maryland

Para um destinatário ignorado

Lídia Jorge *

Há ideias falsas que são salvadoras, e o interessante é que o contrário nem sempre é verdadeiro. Entre elas, ocorre-me em particular aquela que me tem acompanhado ao longo do tempo e que consiste em pensar que a vida com suas escolhas condicionadas pela estreiteza do real, é um destino, mas a Literatura, neste caso a ficção, é um amplo campo de liberdade. Liberdade de escrita contra o destino da vida, eis uma boa bandeira, daquelas que podem flutuar ao vento para nos levar para longe, uma bandeira, porém, que não resiste à mais pequena tentativa de análise. Uma verdadeira falsa bandeira. Quem a usa sabe quanto de destino também existe na escrita, e como a vida seria impossível se sobre ela e sua deriva, não houvesse margem para nos imaginarmos donos do nosso livre arbítrio.

A esse propósito, ocorre-me falar duma experiência curiosa que arrasto comigo há mais de vinte anos, e que apesar de se dispersar no tempo, e chegar mesmo a sumir-se nele como se já não tivesse energia para sobreviver, acaba sempre por criar novos capítulos que a ressuscitam como se tivesse vida própria para se refazer e recontar. Refiro-me a certa narrativa cuja escrita iniciei precipitadamente, convencida que o seu fim estava próximo do início, de tal forma me parecia ter chegado à primeira página, já perfeita e trabalhada. A intriga era simples. Tratava-se da história dum lavrador do Sul do meu país, um rico latifundiário, homem generoso, que em chegando o mês de Setembro, abria as suas coutadas aos caçadores das redondezas para que aí pudessem caçar à vontade. Ele mesmo, um bom atirador, integrava o grupo de homens, partindo no seu jipe, de madrugada. Sucedia, porém, que algumas vezes, enquanto os convidados se reuniam no pátio, antes de saírem para o confronto com os animais, no meio da obscuridade, uma das filhas do lavrador-caçador aparecia em camisa de dormir de olhos semicerrados, caminhando junto às paredes e depois, como se estivesse acordada, sem tropeçar no quer que fosse, de mãos estendidas, dava várias voltas à casa. A imagem da rapariga sonâmbula, nem a dormir nem acordada, em roupas alvas, no meio da noite, fazia sucumbir os caçadores, que atrasavam a partida durante meia hora, para poderem vê-la regressar. O próprio pai, orgulhoso da imagem deslumbrante da filha, cujos cabelos compridos lhe chegavam à cintura, também ele permanecia especado no pátio, falando baixo, mostrando como a rapariga era capaz de contornar obstáculos, tactear o gargalo do poço, atravessar o jardim de fracas plantas sem as pisar, e de regressar ao seu quarto, com o seu andar vacilante. Sucedeu, porém, que num dia de Inverno, para escândalo e surpresa de todos, principalmente de si mesma, a rapariga descobriu que estava grávida, e depois de um tempo de luto assombrado, numa manhã de Verão, a sonâmbula dava à luz uma criança, um rapaz, a quem o lavrador, vencido, acabaria por consentir que se desse o seu próprio nome de família.

A história, porém, não terminava pelo reconhecimento do bastardo concebido sem cooperação da jovem mulher. Digamos mesmo que aí chegada, a história ainda mal havia começado, pois o que se seguia é que enchia de vigor a minha fantasia. A sequência dos factos engendrava-se de forma excitante - Dois dias depois do nascimento, o lavrador-caçador debruçava-se para o pequeno vulto do recém-nascido, descobria-o, estudava-lhe as feições. Pensava, pensava, e dizia para si, em voz baixa – “Foi fulano, o traidor…” Subia ao sótão da casa, procurava uma arma, e passado algum tempo, o dito fulano aparecia abatido, à beira da estrada. Mas as feições das crianças alteram-se com a velocidade das nuvens. Aos seis meses, quando o bebé já se agitava e soltava gargalhadas querendo sair do fundo do berço, o lavrador-caçador achou que bem poderia ter sido outro o pai incógnito. O olhar da criança, a forma como franzia os olhos cor de mel, não o enganava – “Foi beltrano, o maldito…” E passadas duas semanas, o beltrano aparecia estendido junto do próprio jipe, com uma bala metida no peito. E assim, no dia em que a criança fazia dois anos, o seu avô fora assaltado por uma dúvida atroz – Ter-se-ia enganado? Quem dormira com a sua filha sonâmbula, afinal, não teria antes sido cicrano? Uma semana depois, cicrano iria aparecer abatido, à porta de sua própria casa, debruçado sobre um riacho de sangue. Até que haviam passado cinco anos, e certo fim de tarde, ao ver o neto a correr dos braços da sua mãe para os braços das suas tias, de súbito, o lavrador-caçador julgou ver-se a si mesmo estampado na cara da criança. Precipitara-se para a moldura onde alguém, muitos anos atrás, encaixilhara a sua própria fotografia de menino, mirara-a e remirara-a, e acabaria por se perguntar - Afinal, não seriam os seus próprios traços que se encontravam no rosto do seu neto? Tomado por esse sobressalto, que o colocava diante dum invulgar dilema, teria ido dentro de casa buscar a arma secreta de que se havia servido para o ajuste de contas aleatório, e viera para a rua, a contas consigo mesmo. Mas esse era o momento em que a narrativa se suspendia. No pátio estavam as filhas sentadas, incluindo a sonâmbula, estavam as crianças a correr, gritando de alegria, era Verão de novo, não tardava que as estrelas viessem povoar o céu, e aquele homem tinha uma arma na mão, e desta vez o destinatário teria de ser ele próprio. Só que ao lavrador-caçador, eu não o queria eliminar. O que fazer então da mão daquele homem assassino, perdido entre o amor, o direito natural e a vingança? Não sabia que destino dar-lhe. Sentia-me eu mesma o lavrador-caçador, eu mesma tinha a arma na mão, tinha a rapariga sonâmbula no pátio, tinha a criança de cinco anos a correr entre as outras, e sem saber o que fazer de tudo isso, comecei a contar esta história aos amigos, na esperança de encontrar uma solução. Então um deles, um escritor que me escutou com infinita paciência, disse por fim – “Esquece essa história, nunca a acabarás, herdaste-a de algum lugar que não te pertence, ela não é do teu mundo…”

Sim, provavelmente acabarei por nunca escrever esta história. Pertence por certo àquele número vasto de narrativas falhadas que nunca verão a luz do dia, animais nados-mortos que objectivamente não servem para nada, e no entanto, continuam a brilhar no escuro da imaginação e alimentam um território de tal forma carregado de beleza e violência, que acaba por ser tão sedutor quanto incontrolável. Aliás, há pouco tempo, a peregrinação desta história acabou por ter novo impulso. Encontrava-me numa Casa da Literatura nos arredores de Berlim, e os três jovens literatos que me acompanhavam, levaram-me até ao túmulo de Von Kleist à beira do lago Wannsee. Ao falar-se do romântico Von Kleist , falou-se dos contos que nunca li, e ao falar-se dos contos, falou-se de A Marquesa de O, cuja história não deixa de ter fortes pontos de contacto com aquela que me persegue, uma narrativa de raiz aristocrática, cuja solução final acaba por ser triunfalmente feliz. Depois viria a saber. Mas o fascínio pela minha narrativa inconclusa assaltou-me de novo. Não deverei eu, um dia, tentar solucionar esta história? Ou deverei entender para sempre que é apenas um fóssil que se agita como herança dum passado que não mais existe ? – Afinal Freud , há mais de um século, tendo descrito a histeria e seus biombos, retirou todo e qualquer romantismo à figura da sonâmbula. Também a paternidade deixou de ser uma carta secreta, hoje em dia está inscrita numa folha branca de laboratório onde se descreve o ADN da mosca e do homem. Afinal a metáfora da mulher anjo que atravessa o jardim da minha história, foi completamente banida nas sociedades ocidentais, ou está confinada a alguns resquícios sem expressão. Afinal esta história, sendo um ajuste com a natureza, não aponta para nenhum ajuste com as práxis que regulam o Mundo. Provavelmente, eu não escreverei esta história. Mas não é verdade que ela não seja do meu mundo, tanto pelo que conta quanto pelo que não conta. Ainda que resulte dum território indomável, ela está numa linha de contiguidade com a minha vida.

Passei grande parte da infância num ambiente rural, e descontadas as flores, os animais e os astros, isso significa, basicamente, duas coisas – por um lado, uma dispersão das pessoas entre as quais se intromete o espaço como intervalo que age, e por outro lado, uma troca demasiado concentrada dos actos passionais que habitam os seres humanos. Trata-se do palco nu da terra e do mar a separar as pessoas, ao mesmo tempo que a interioridade dos actores, dispersos por esse largo Huis Clos sem fronteiras, é vista em desenho aumentado, à transparência crua da luz, e ao alcance do olhar perfurante do outro. O mundo rural é isso, ou pelo menos, até há pouco tempo, foi isso, um espaço de revelação, uma câmara radiográfica apontada ao interior dos seres. Tudo o que ainda hoje sei, ou dito de outra forma, o pouco que sei sobre a paixão e o desejo, a saudade, a morbidez, a ferocidade da luta pelo poder, a compaixão e a loucura, aprendi aí, entre homens e mulheres que dispunham de espaço e tempo para o apuramento e aplicação dos seus impulsos e dos seus medos. Havia uma vista para o mar, mas era entre casas dispersas e pequenas aldeias separadas por caminhos sinuosos que se passava essa dramaturgia da revelação do outro. Nas redondezas só havia pequeno comércio. Mas a ganância, eu a aprendi com aquele merceeiro que usava duas balanças na sua loja, uma para vender, outra para comprar. Ali a fruta era escassa, as crianças assistiam ao amadurecimento de cada baga. A prepotência eu a aprendi com aquela fazendeira que enterrava a fruta no quintal da casa para não ter que a repartir com as crianças. Matar um homem não era um gesto banal, mas era um gesto incorporado no espectáculo da vida. A vingança, eu soube o que era, com aquele homicida, que na manhã em que regressava da prisão, depois duma pena amnistiada, o primeiro gesto que teve foi assassinar a testemunha que o havia incriminado. E o amor? Havia o amor. A força do seu tumulto indomável esteve presente na cena de um homem, que roubava peças de roupa do estendal duma jovem viúva que não queria ser sua amante, e ao ser levado pela autoridade, rua fora, ainda perguntava – Onde está ela? E ela, guardada pela família, à janela da casa, a vê-lo passar estrebuchando entre os guardas. E havia a providência. O sentido da providência ainda não tinha a ver com o Estado, só com a divindade. Não tinha a ver com a reivindicação, só com a espera. Não tinha a ver com a revolta, só com a obediência. A voz da Divina Providência eu a associo à embirração daquele homem que se sentou à entrada da sua fazenda, disposto a não comer nem beber enquanto a chuva não caísse sobre o seu campo de milho. Ao segundo dia, choveu sobre o campo de milho. Mas tudo o que depois a vida prolongada nos meios urbanos e as viagens me deram, outros trajes e outra velocidade, não passa da ampliação desse filme inicial miúdo e descritivo, como uma tela infinita de um Delacroix profano que não terminasse mais. É divertido imaginar como o espectáculo da Natureza à solta ofereceu aos idealistas do século XIX mitos cândidos, como o do bom selvagem. A Arte do século XX, em particular a Literatura, acantonada no papel de se perguntar sobre a última fatia da coisa harmónica, de par com a História mas mais funda do que ela, encarregar-se-ia de destruir por dentro não só o mito do bom selvagem, mas todo e qualquer mito do homem bom. O mito do próprio homem. Não nego que me rendi a essa questão inquietante. A modernidade saída de 1900 tem dito de todos os modos, que a natureza humana não cabe em nenhuma definição, é um imbróglio de matéria obscura. Uma alucinação de si própria. Aos nossos olhos contemporâneos, Job, o homem impecável, objecto duma aposta entre Deus e o Diabo, injustamente vitimado, e pela sua fidelidade, sujeito depois a uma boa recompensa, há muito que deixou de ser uma história moral, para ser uma simples história de fadas. Os livros escritos no século XX, aqueles de que mais gostamos e com os quais nos formámos, são fábulas criadas para erguerem, de mil maneiras, a demonstração de que não passamos de figuras bizarras, contendo num só recipiente a raiz de todos os bens e de todos os males, incluindo o acto de julgar e a nomeação das coisas, o que ainda por cima só a nós nos pertence. Mas sabemos como é – Quando a essa questão destemperada se junta a música da língua, nascem as páginas com escrita. As minhas primeiras linhas com alguma consistência, eram continuações das leituras avulsas que fazia tanto do Gog do Giovanni Papini, quanto do Nada de Carmen Laforet, A Peste de Camus, e Kafka, Faulkner, Virginia Woolf, e assim por diante. É verdade que se as possibilidades da escrita só na aparência serão infinitas, as possibilidades de leitura, essas, por certo que o são por certo. A partir do meu ângulo, todos esses livros que lia em estado de sofreguidão, e queria tomar por modelo, me falavam dessa obscura indefinição do ser humano como único tema, ou então, eu o trazia comigo, arrancado da própria experiência de vida e essa era a lente grossa através da qual os lia. Da mesma forma que em português, é o que une os autores que ao longo do tempo mais tenho visitado, Vergílio Ferreira por inteiro, José Cardoso Pires, o dos textos inconclusos, Agustina Bessa-Luís, e seus livros sobre a obscura teia da perversidade que tece a sobrevivência, a paixão e o domínio animal dos seres humanos. E existe Pessoa. Talvez o grande fascínio que Fernando Pessoa exerce sobre nós, portugueses, e hoje sobre uma parte imensa dos grandes leitores de Poesia do Mundo, seja o facto de toda a sua obra se desenrolar a partir do terreno ontológico, declinando até ao infinito não só a impossibilidade de definir, como a impossibilidade de ser.

Mas esta é uma deriva, e objectivamente eu tenho escrito sobre matérias que diria concretas, delimitadas no tempo histórico, no espaço geográfico, na memória vivida pela geração a que pertenço. Fazer a crónica do tempo que passa, tem-me interessado, e não desdenho do juízo daqueles que dizem encontrar nas minhas páginas uma espécie de febre em testemunhar os factos. Não pretendo escapar a essa ligação perigosa com a realidade directa do social e do presente. O próprio colectivo não tem sido apenas um tema, tem sido um sujeito de escrita, tão transversal, por vezes, que o sinto impregnar-se na forma e moldar as estruturas da acção. Escrevi um livro que tem por fundo a Revolução do 25 Abril, um outro que invoca os últimos passos da Guerra Colonial em África, outros centram-se nas relações pós-coloniais que o meu país vive de um modo particular, a par daquelas outras relações, pós-coloniais também, que a Terra inteira está a viver na globalidade, com a intensidade que se conhece. Escrevi sobre a mudança de parceiros do meu país, e seu estado de ansiedade por querer ser próspero e moderno. E sobre as raízes da lentidão que o atrasam, no objectivo de querer ser europeu, próspero e moderno. Escrevi livros que falam de cidades portuguesas, de famílias portuguesas, das novas mulheres e sua identidade. Escrevi sobre tudo isso, mas verdadeiramente nunca escrevi por isso, nem para isso. O real invade-me, com suas reportagens porque está lá, faz parte do outro domínio, o domínio que me interessa, como uma parcela indispensável do todo do qual não se pode arrancar. Quando Carlos Fuentes se refere à Literatura como uma estrela de três pontas, duas subjectivas e uma terceira, objectiva, mergulhada no devir histórico que é pertença de toda a comunidade, o autor de Terra Nostra sabe do que está a falar. É fácil falar desta terceira ponta da estrela, a objectiva, pois sendo comum a muitos, ela permite que escondamos a indecência que é mostrarmos as outras duas, essas outras onde a nossa intimidade se enrola no seu percurso subjectivo e solitário, sempre driblado pelos enganos da memória.

E contudo, as coisas passam-se assim - Tudo começa pela imagem duma figura que surge vinda do exterior, e fala, ou várias figuras que pronunciam palavras. No início elas estão sempre mergulhadas numa espécie de sombra, de onde só emergem algumas formas e cores, e existe ao mesmo tempo, uma tensão que fere a imagem, e um lado de encanto de onde sai a voz que se ouve. No fundo da primeira imagem está o perigo e a desordem, a loucura e a desarmonia. Na segunda, o tal encantamento. Se as duas partes se digladiam a ponto de perceber que as vozes são audíveis e persistentes, a ponto de haver um discurso captável sobre as vidas que ainda não se movem, mas já têm movimento, isso significa que alguma coisa vem a caminho, e então a coisa desemboca em espaços abstractos, a que por certo a impotência da sua invenção plena, conduz à chamada das realidades vividas. Custa-me que a realidade vivida entre, então, com os seus cartazes nítidos, suas fotografias datadas, países e costas reconhecíveis nos mapas. Mas o processo é este - figuras que têm o charme de surgir de nada para falarem dum mundo misterioso que plane fora da realidade para de longe a iluminarem duma outra forma, e lhe darem o sentido do qual carece, como nos sonhos, afinal essas figuras têm os pés mergulhados no real, foram baptizadas pela vida antes de terem nascido. Afinal, a cobra voadora que durante dois anos me assaltava em sonho, e voava sobre uma multidão, no fascínio repelente pelas suas escamas azuis, trazia atrás de si o tanque de guerra carregado de soldados que esteve na origem de “O Dia dos Prodígios”. No livro, essa cena da passagem dos soldados pela aldeia ocupa umas escassas páginas, mas só depois de publicado, ficaria claro que tinha escrito um livro sobre uma Revolução muito especial, e sobre o carácter do povo que a fez – uma gente, a gente a que pertenço, com demasiada força no hora de sonhar, demasiada debilidade na hora do agir. Perceber até que ponto a persistência duma primeira imagem que contém no seu interior um processo dinâmico, é capaz de desencadear uma narrativa sucedida, pode não ser obra de talento, antes obra do acaso. Entre uma coisa e outra, um passo misterioso, como toda a escolha na vida.

Lembro-me de uma outra primeira imagem, neste caso, uma imagem ao mesmo tempo esbatida e ampliada, a partir da realidade. Uma nuvem espessa de gafanhotos, uma nuvem verde na noite, que ao mesmo tempo separava e unia dois grupos humanos, os europeus atrás dos cortinados de veludo, os africanos à volta duma fogueira, o som das vozes de salão de uns, o som dos cantares de alegria de outros. Essas imagens escondiam a história inventada de “A Costa dos Murmúrios”. Dez anos seguidos com as mesmas imagens. Afinal, nos copos de uísque dos militares que olharam atrás dos vidros, imóveis, durante todos esses anos, estava o desenho das garrafas de álcool metílico que iriam desencadear a matança. No entanto, o cenário da guerra colonial, com seus desmandos e ficções tenebrosas, parecia-me secundário. Eu apenas desejava escrever sobre o cerne da violência que trazemos escondido debaixo dos nossos vestidos, que apertamos com elegância sob os nossos cintos, sem o sentirmos, nem ocupar espaço, mas existe. Explode quando menos julgamos. Tudo o que eu desejava formular com esse livro era coisa vaga – Se só temos a fala para dizermos quem somos, então por que é que não nos ouvimos, enquanto a fala é possível? Mas depois, essa fábula quase imaterial para onde eu apenas gostaria de convocar figuras que deslizassem como sombras entre as ondas e as palmeiras, acabou por chamar um cortejo de espingardas e crimes apagados, cuja história não termina ali, porque se repete, hoje, amanhã e depois, noutros lugares, com a mesma lógica ácida, a mesma sensibilidade. Atrás dessa fábula veio um pedaço da História da relação entre a Europa e a África. Da frente para trás, ela chamou um pedaço da confronto entre o Ocidente e o Mundo, os outros mundos e o Ocidente, confronto que não mais acaba. Claro que estou a expandir o sentido deste livro, à minha medida. Mas tudo começou por uma nuvem de gafanhotos verdes, voando à volta dos candeeiros duma estrada, durante dez anos. Uma pequena fábula étnica sobre o sentido duma praga.

Poderia continuar. Recordo dos livros esse momento inicial que os formou como recordamos o rosto de alguém que pela primeira vez encontramos e se torna definitivo nas nossas vidas. No caso de “ O Vale da Paixão”, existe a imagem duma manta de caserna estendida na lama, a partir da qual a voz do soldado morto, como se estivesse incorporado nela, reclamava justiça para a narrativa deformada no que respeita à sua memória. Essa voz que subia por uma escada era uma pessoa viva, levava uma luz na mão, e pedia a quem encontrava que lhe escrevessem a sua vida. Pedia que ficasse conhecido como alguém que havia deambulado pela Terra, movido pela ideia de que, quanto mais se afastava de casa, mais se aproximava da sua verdadeira morada. Mas depois, essa história, um breve conto de soldado, trouxe atrás de si migalhas duma família inteira, pedaços de destinos anónimos de que são feitas as diásporas. Na origem de “O Vento Assobiando nas Gruas” está a imagem duma rapariga descalça, caminhando na areia, uma rapariga que retira o chapéu, vira-se, fecha os olhos e pergunta – “Esqueci-me de tudo. Quem sou eu?" Um ano de persistência dessa imagem, um ano de dúvida. Só depois, nesse espaço arenoso, a caravana dos cabo-verdianos Mata começou a avançar, só depois se dá a deambulação pela costa, muito depois um dos Mata se isola, e interpreta o papel do homem que sente amor. Melhor dizendo, ambos, Antonino Mata e Milene, libertos e presos pelo amor.

Aliás, eu nunca fiz a pergunta fundamental sobre onde começa o Bem e o Mal. Mas entre os mil casos que a declinação dessas duas palavras comporta, eu sempre escolhi uma das formulações mais terrenas, menos sigilosa, ou simplesmente mais adaptada à natureza do meu palco. As figuras estão ali, em conjunto, e agitam-se, avançam no papel, falam todas ao mesmo tempo para perguntarem – Como estava o amor quando eu aqui cheguei? Como estava o amor quando eu daqui parti? Resposta dada ou não, interessa-me esse intervalo. Escrevo, para dar vida a outras figuras que não sou eu, na tentativa de que alguma delas, tão diferente de mim, certamente mais sábia, mais sagaz, mais diligente, ou mais ousada, ou mais ácida, mais justa ou mais diabólica do que eu, possa fazer esse balanço e resolver antes de mim, o que eu nunca virei a saber. E por isso mesmo, porque toda essa gente de palco não existe senão na dimensão escassa da liberdade que é escrever, eu mantenho a ideia de que é da irrealidade que provém esse improvável saber. Kafka é um génio porque trabalhou só aí, não precisou de mais nada. Borges de algum modo, também. Todos podemos invejá-los, ou mesmo segui-los como fez Italo Calvino, como parece querer fazer nos dias de hoje, Antoine Volodino, por vezes Alessandro Baricco, mas poucos podem parecer-se com aqueles. O peso da realidade arrasta a maior parte dos escritores pelo chão da narrativa que reproduz a matéria do real. Acho que pertenço a esse team. Quer queira quer não, a realidade está logo ali, oferecida, ela caminha atrás dos personagens como se fosse a sua sombra material, e eu entrego-me a ela, como quem aceita um par que lhe foi destinado, dançando com toda a alegria, independente do corpo que dança e do efeito que causa. Anima-me nesse entusiasmo a ideia de que a memória selecciona da realidade os pontos que formam um sentido e que os projectos que se desencadeiam durante a narrativa deformam a História de que se é testemunha construindo, de modo inocente, uma parábola gerada pelo desejo de transformação da vida. A beleza e o desejo não podem entrar em vão para o interior da escrita. A beleza e o desejo que se junta ou se escolhe entre as migalhas que brilham na enxurrada do tempo, entram na ficção para forçar de propósito a lógica da realidade. A esse propósito, Adorno não escreveu que à luz da redenção o mundo aparece, inevitavelmente, deformado? Resta saber se no futuro existe espaço para este tipo de narrativa. Se o leitor ignorado que há duas décadas se pôs a caminho, precisará como nós, desta deformação do real para a sua felicidade.

Claro que eu nunca vou escrever a história da rapariguinha sonâmbula. Que ela fique lá de onde veio, uma espécie de tijolo que resistiu a uma certa demolição biográfica. Sobre os aspectos biográficos, Kundera disse que o romancista é aquele que destrói a casa da sua vida, para, com as pedras, construir a casa do seu romance. Na sua interpretação, os biógrafos de um romancista desfazem o que o romancista fez, refazem o que ele desfez. Kundera terá razão, sem dúvida. Eu tenho, no entanto, a ideia de que aquela história do lavrador-caçador persiste, tão arcaica e tão vivaz, só para me dizer que o edifício da escrita é um espaço de jogo que não termina mais. A prova é que muitas vezes penso nela ao contrário. A rapariga sonâmbula tinha sonhado esse sonho, ouve um tiro de carabina, acorda e encontra-se no meio do pátio. Então um caçador que ela nunca viu aproxima-se e diz-lhe que teve de abater vários animais, até chegar junto dela, para ela lhe contar o sonho que ele viveu acordado.

É verdade também que outras imagens perseverantes das quais eu espero que resultem certos textos, incluem rostos de gente meio a dormir meio acordada. Continuo a amar essas figuras que estão à disposição de um saber, que as faz não agir como gente e por isso mais indefesos e também mais sábios, conhecedores de uma outra forma de estar. Personagens como o Leonardo de “O Jardim sem Limites”, o rapaz que se imobilizava horas a fio sobre um plinto no meio da Rua Augusta, e a partir do seu poiso fazia rodar o mundo ao sabor do seu desejo de triunfo. Aquele que desejava repartir com o acrobata Paolo Buggiani, uma performance a dois, entre as Torres Gémeas dos anos noventa, e atrás dele, que só desejava viajar e partir, acabaram por aparecer ruas e casas lisboetas, globalizadas antes de o estarem. Não tenho dúvida que de futuro será igual ou semelhante. Levada por essas figuras que cochilam em cadeiras de lona à sombra das árvores, e que eu desejaria que me conduzissem até histórias subtis, sem peso, poemas indianos de três versos, mais pequenos que sombras de cigarros, em vez deles, sei que hei-de acabar por me entregar ao destino histórico do meu país, por mergulhar nas suas contradições profundas, reproduzir histórias das lutas tribais que assolam Lisboa, os braços da escrita enterrados até aos cotovelos da realidade como testemunha. Parto de um outro lugar, mas é sempre aí que vou ter. Com a ilusão de que se assim não proceder, deixarei personagens reais atadas ao seu destino, sem hipótese de liberdade. E essa esperança dá a volta e brilha no escuro.
___________________

* No 4.° Congresso da American Portuguese Studies Association,
na Universidade de Maryland,
em que a escritora foi a convidada de honra,
a 13 de outubro de 2004
Tire uma cópia

Sem comentários :

Enviar um comentário