De noite
Lídia Jorge *
Eu saía dos Cinemas Residence, era de noite e atravessava o Parque de Estacionamento do Saldanha, quando dei por uma mulher cambaleante a ser levada por uma criança.
Aproximei-me.
A mulher era negra, a criança era branca.
Quando amparei a mulher, ela escorregou pelo meu corpo e caiu no chão. Debrucei-me, perguntei para onde iam. A miúda olhava aterrada, mas não dizia uma palavra. A mulher, deitada no chão, disse que procurava a Maternidade Alfredo da Costa. A criança branca mantinha a boca fechada. Procuravam uma maternidade, e no entanto, a mulher não parecia grávida.
Então olhei para os seus jeans, molhados até aos joelhos, e percebi o que se passava.
Estávamos as três sobre o passeio que ladeia a estação dos táxis ao Saldanha e vários taxistas olhavam para nós. A mulher no chão.
Eu pedi – “Um dos senhores, por favor…Levem-nos até à Maternidade. Eu sei que é logo ali, mas levem-nos…” Eram cinco os taxistas, nenhum se moveu. Todos se recusaram. Um deles irritou-se e gritou – “A lei proíbe transportar pessoas nesse estado, minha senhora…”
Os cinco taxistas só olhavam, um deles ria.
Agora a mulher tinha abandonado a mala, abandonado a mão da menina, tinha abandonado a minha mão, e ia gatinhando pelo asfalto.
Por perto, alguém começou a rir. Ela ia gatinhando entre os táxis. Desistiu de gatinhar.
Ela estava sem sentidos, do outro lado dos táxis.
Felizmente que a ambulância chegou passado pouco tempo.
Enquanto a ambulância não chegava, eu fiquei a saber que esta mulher tinha três crianças, estava sem emprego, e fora uma sua amiga, a mãe da miúda branca, quem a mandara acompanhar a mulher, que lá ia na ambulância. Soube pela menina de nove anos.
Não soube mais nada da vida desta menina, mais nada da vida desta mulher.
Se sobreviveu e vive com os seus três filhos, sou sua irmã.
Se morreu, sou sua irmã duas vezes.
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* crónica lida no Programa "Prós e Contras", 14 janeiro de 2008
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